segunda-feira, 26 de março de 2012

Terra

T e r r a



Caetano Veloso & Naná Vasconcelos






Quando eu me encontrava preso

Na cela de uma cadeia

Foi que vi pela primeira vez

As tais fotografias

Em que apareces inteira

Porém lá não estavas nua

E sim coberta de nuvens...



Terra! Terra!

Por mais distante

O errante navegante

Quem jamais te esqueceria?...



Ninguém supõe a morena

Dentro da estrela azulada

Na vertigem do cinema

Mando um abraço prá ti

Pequenina como se eu fosse

O saudoso poeta

E fosses a Paraíba...



Terra! Terra!

Por mais distante

O errante navegante

Quem jamais te esqueceria?...



Eu estou apaixonado

Por uma menina terra

Signo de elemento terra

Do mar se diz terra à vista

Terra para o pé firmeza

Terra para a mão carícia

Outros astros lhe são guia...



Terra! Terra!

Por mais distante

O errante navegante

Quem jamais te esqueceria?...



Eu sou um leão de fogo

Sem ti me consumiria

A mim mesmo eternamente

E de nada valeria

Acontecer de eu ser gente

E gente é outra alegria

Diferente das estrelas...



Terra! Terra!

Por mais distante

O errante navegante

Quem jamais te esqueceria?...



De onde nem tempo, nem espaço

Que a força mãe dê coragem

Prá gente te dar carinho

Durante toda a viagem

Que realizas do nada

Através do qual carregas

O nome da tua carne...



Terra! Terra!

Por mais distante

O errante navegante

Quem jamais te esqueceria?

Terra! Terra!

Por mais distante

O errante navegante

Quem jamais te esqueceria?

Terra! Terra!

Por mais distante

O errante navegante

Quem jamais te esqueceria?...



Na sacada dos sobrados

Da velha são Salvador

Há lembranças de donzelas

Do tempo do Imperador

Tudo, tudo na Bahia

Faz a gente querer bem

A Bahia tem um jeito...



Terra! Terra!

Por mais distante

O errante navegante

Quem jamais te esqueceria?

Terra!


sexta-feira, 23 de março de 2012

Salmão, Maré, Sol e Lua

Você já pensou na relação que pode existir entre Peixe, Maré, Sol e Lua? 

Pois há um caso fantasticamente verdadeiro que ilustra muito bem o significado de estar-em-relação. 

É o caso do salmão-de-mar-aberto.
Theodor Schwenk relata isso em seu livro Das sensible Chaos:




Todo ano, no mês de maio, 
o salmão vem para a costa da Califórnia,
e por ali fica, esperando o momento
em que a maré alta atinge o ponto culminante.

No terceiro dia após a Lua Cheia, o plenilúnio,
deixa-se levar à praia, precisamente na última onda,
a mais alta da maré.

A fêmea então põe ovos na areia molhada
e os machos imediatamente os fecundam.

Logo chega a próxima onda,
a primeira da maré vazante,
que leva os salmões de volta ao mar.

Esta onda já não atinge a mesma altura da praia
onde ficaram os ovos.

Somente após catorze dias, lá vem de novo
a última onda da maré cheia. 

Alcança os ovos,
recolhendo ao mar os filhotes que acabaram de nascer.

Ano seguinte, no mês de maio, no terceiro dia
após a lua cheia, repete-se o fenômeno:
os peixes voltam às mesmas praias
para cumprir o mesmo rito de procriação.

Será também o mesmo instante
em que Salmão, Terra, Sol e Lua
estarão em certa relação.

Melhor dizendo - em relação certa.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Educação Ambiental no Brasil: o que mudou nos vinte anos entre a Rio 92 e a Rio+20



Por Philippe Pomier Layrargues
10/03/2012

Philippe Pomier Layrargues é professor adjunto do curso de gestão ambiental da Universidade de Brasília (UnB).

 

Como a cultura científica brasileira não tem incorporada a rotina de produção e sistematização da informação em séries históricas periódicas, o que pode então nos auxiliar para efetuar a reflexão sobre as mudanças que ocorreram em certo campo social ao longo de um determinado período é, basicamente, o testemunho da vivência militante dos profissionais que acompanharam o desenrolar dessa história. Se para exercícios dessa natureza, como no campo da educação ambiental, é possível identificar os momentos mais visíveis – de surgimento ou desaparecimento de algo –, por outro lado é muito difícil medir qualitativamente os aspectos sutis daquilo que se ampliou ou reduziu, se consolidou ou se fragilizou, se fortaleceu ou enfraqueceu, se tornou central ou periférico, sem um adequado instrumento de coleta e tratamento de informação. Portanto, um exercício de tal proporção, exige o estabelecimento de um diálogo envolvendo os sujeitos que não só acompanharam, mas participaram ativamente desse período histórico1. Assim, sem sombra de dúvidas, o estabelecimento de uma robusta metodologia de monitoramento periódico é um desafio que se coloca de forma imperativa para se conhecer e acompanhar de perto a realidade da educação ambiental, essa prática pedagógica incrivelmente dinâmica em sua historicidade. 

Um dos contextos mais centrais a se considerar neste período que abrange dois decênios, entre a Rio 92 e a Rio+20, é o significativo programa de incentivo que as Nações Unidas protagonizaram a partir de 2005, instituindo no plano internacional, nada menos que a “Década da educação para o desenvolvimento sustentável”. Poucos temas possuem o privilégio de receber o destaque e atenção pública que a instituição das décadas das Nações Unidas pode oferecer a um determinado tema de alta relevância. Porém, faltando apenas dois anos para a sua conclusão, a constatação mais cabal e surpreendente é que a década passou praticamente despercebida e sem grandes efeitos para influenciar mudanças na educação ambiental brasileira em dez anos. Proposta em Joanesburgo no âmbito da Rio+10, foi recheada de muita apreensão e controvérsias no continente latino-americano. Se, por um lado, esse movimento poderia representar um vigoroso estímulo ao fortalecimento do processo educativo articulado à sustentabilidade, por outro lado, a década também representa a culminação de uma estratégia de consolidação simbólica do dúbio e questionável conceito “desenvolvimento sustentável”, com sua tendência economicista e sua vinculação com as ecotecnologias e com as forças de mercado como fatores indutores da sustentabilidade no regime capitalista de desenvolvimento. Como saldo desse período, diante da encruzilhada ideológica a escolher, tudo indica que a educação ambiental brasileira optou por abrir mão dos benefícios advindos com o estímulo político conferido à matéria educativa vinculada às questões ambientais, e rechaçou a proposta da “Década da educação para o desenvolvimento sustentável”, em nome da manutenção da força simbólica presente na identidade cultural do conceito “educação ambiental” concebido no país, fortemente vinculado à ideia de se trabalhar por “sociedades sustentáveis”, e não para o “desenvolvimento sustentável”.


No plano legal, pudemos assistir a um notável processo de institucionalização da educação ambiental no país, neste período de vinte anos. Tivemos, em 1999, a criação – relativamente prematura – da Política Nacional de Educação Ambiental (Pnea) – a primeira na América Latina –, e sua regulamentação efetivada em 2002. Esse marco legal veio se somar a outras matérias legais que já asseguravam à sociedade brasileira o direito ao acesso universal à educação ambiental, como a própria Constituição Federal e a Política Nacional do Meio Ambiente; mas como um corpo legal específico para a educação ambiental, avança na tipificação dos princípios, diretrizes, objetivos, características, modalidades e outras questões necessárias à sua prática.


Esse período testemunhou também a criação de novos marcos regulatórios para a gestão pública da educação ambiental como, por exemplo, a resolução 422/2010 do Conselho Nacional do Meio Ambiente, que estabelece as diretrizes para as campanhas, ações e projetos em educação ambiental, a Nota Técnica 01/2010 do Ibama, que estabelece as diretrizes para os programas de educação ambiental no âmbito do licenciamento ambiental do petróleo e gás, e a “Estratégia nacional de comunicação e educação ambiental em Unidades de Conservação”, lançada pelo Ministério do Meio Ambiente em 2011.



Novos espaços públicos

No plano político-institucional, assistimos ao surgimento de novas institucionalidades e espaços públicos para lidar com o planejamento da educação ambiental: em primeiro lugar, na esfera federal, foi criado o Órgão Gestor da Política Nacional de Educação Ambiental, unindo os Ministérios do Meio Ambiente e o da Educação, com seu respectivo comitê assessor, composto por pouco mais de uma dezena de instituições de grande relevância no país. Na esfera estadual, foram criadas as Comissões Estaduais Interinstitucionais de Educação Ambiental, instâncias democráticas responsáveis pela formulação de políticas estaduais para a educação ambiental, apoiando as secretarias de meio ambiente e de educação na condução de seus programas e estratégias estaduais. Chegou-se inclusive a se aventar a criação de um Sistema Nacional de Educação Ambiental, que teria como meta dar um salto de qualidade na articulação institucional entre os atores e instituições que lidam com a educação ambiental não só entre as três esferas de governo, mas também com a sociedade civil, para potencializar a sinergia e complementaridade neste processo educativo que se espera ser contínuo e permanente.


Porém, se, por um lado, é notório o surgimento e consolidação do processo de institucionalização pública da educação ambiental neste período, inclusive com uma migração muito interessante de educadores ambientais que trabalhavam nas universidades, escolas e organizações não governamentais, que aceitaram o desafio de ocupar espaços governamentais centrais na formulação de políticas públicas de educação ambiental, aprendendo a fazer política a partir da própria experiência que ora se iniciava, por outro lado, podemos testemunhar às vésperas da Rio+20 haver ainda algumas fragilidades no campo político-institucional: baixa qualificação profissional não apenas entre alguns quadros técnicos dos gestores governamentais, mas também nos membros presentes nas instâncias colegiadas, que acumulam ainda a questão da fraca representatividade, muitas vezes não pertencendo ao campo da educação ambiental propriamente dito; constatação da necessidade de se efetuar alguns ajustes no texto da Política Nacional de Educação Ambiental, em decorrência da vivência e experimentação de sua implementação; constatação de algumas descontinuidades políticas na sucessão entre as distintas gestões governamentais, acrescidos de uma certa insatisfação com a elaboração de programas públicos nacionais de educação ambiental instrumentalizados pela pauta do ambientalismo pragmático, vertente do ambientalismo que põe a educação ambiental estrategicamente a serviço do mercado, para se constituir como um mecanismo de compensação do risco do atual modelo de produção e consumo: assim aparece a educação ambiental no âmbito das mudanças climáticas, da produção e consumo sustentáveis, e da economia verde, com sua face normativa e nada questionadora do atual modelo civilizatório.


E fica ainda a dúvida a conferir, se os avanços conquistados no processo de institucionalização da educação ambiental se traduziram em políticas públicas mais consistentes e apropriadas à realidade brasileira, garantindo um ganho de eficácia na gestão pública. Afinal, de nada adianta louvar os avanços obtidos na institucionalização se eles não se converteram em benefícios reais para a sociedade.


No plano organizacional, assistimos, desde a Rio 92, à criação e consolidação de um modelo de organização social muito característico para a cultura brasileira: as redes de educação ambiental. Iniciamos com a fundação da Rede Brasileira de Educação Ambiental no âmbito do Fórum Global em 1992, e chegamos ao período recente com cerca de 50 redes de educação ambiental, sejam elas estaduais, regionais, locais ou temáticas, que agregam milhares de pessoas predispostas a estarem articuladas e a trocar informações. Neste período de vinte anos, a Rede Brasileira de Educação Ambiental organizou sete Fóruns Brasileiros de Educação Ambiental, considerados como os eventos mais abrangentes e populares da área no país, fornecendo um robusto mapa do estado da arte em cada edição. Porém, como parte da lógica das redes sociais, todas as redes de educação ambiental encontram-se passivas de sofrer com fases de refluxo, alternando períodos efervescentes de atividades coletivas com outros de total apatia e imobilismo. Ainda neste plano organizacional, outro problema enfrentado desde o início, até então, diz respeito à polêmica questão da representatividade das redes junto às instâncias colegiadas com o surgimento dessas novas institucionalidades na gestão pública da educação ambiental, em nome da manutenção da cultura das redes, que prevê a horizontalidade e multiliderança, não sendo, portanto, a forma de organização social mais adequada ao modelo político atual, vertical e hierarquizado. Por fim, um terceiro problema de ordem organizacional, que persiste atualmente, é que algumas dessas redes e suas respectivas listas de discussão na rede mundial de computadores parecem se constituir muito mais como “caixas de som” propagandeando interesses particulares. Esses problemas desafiam um papel que se poderia esperar das instâncias organizadas da educação ambiental, o controle social e participação em políticas públicas. Outra característica, que parece explícita na identidade organizativa da educação ambiental brasileira é seu frágil diálogo para fora do círculo dos educadores ambientais, envolvendo outros atores sociais, notadamente os movimentos populares e sociais.




Inserção na educação formal

Quanto à educação ambiental formal, aquela desenvolvida na escola, neste período entre a Rio 92 e a Rio+20, ocorreu uma expressiva expansão no ensino fundamental brasileiro, inclusive considerado por especialistas como sendo muito acelerado para um período temporal tão curto (notadamente entre 2001 e 2004), atingindo a universalização do acesso à ela na escola e reduzindo as disparidades existentes entre os estados.


Porém, por outro lado, além das clássicas carências existentes na escola brasileira, conhecidas por todos, como a baixa capacitação dos professores, por exemplo, há ainda uma significativa carência institucional para a educação ambiental formal, que é a aprovação da proposta das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental, pelo Conselho Nacional de Educação. Há que se reparar ainda que os Parâmetros Curriculares Nacionais, criados em 1997, não foram culturalmente internalizados na escola brasileira.


O fato de que tendencialmente os professores vêm utilizando como fontes de informação as revistas de popularização da ciência e não a produção científica, elaborada pelos próprios educadores ambientais que contribuem com a formulação teórica do campo, sugere que essa expansão quantitativa da educação ambiental na escola não foi acompanhada por uma expansão qualitativa no refinamento das intervenções educativo-ambientais na escola.


E, no balanço geral, parece que as políticas de educação ambiental para a escola ainda são formuladas de fora para dentro, desvalorizando-as, o que implica no esvaziamento das discussões históricas dos trabalhadores da educação. Tudo indica que a educação ambiental não encontrou as condições ideais para ser estruturante nas políticas centrais da educação (currículo, gestão escolar, planejamento de carga horária docente, carreira docente, função social das escolas etc).


Na academia, retratando a forte demanda por um aprofundamento da formação profissional em educação ambiental, esse período testemunhou ainda a criação dos primeiros e, até o momento, único programa de pós-graduação stricto senso exclusivo em educação ambiental: o mestrado em 1994 e o doutorado em 2005 na Universidade Federal do Rio Grande (Furg). Foi criada também a Rede Universitária de Programas de Educação Ambiental, em 1997, e dois grupos de trabalho em duas associações de pós-graduação e pesquisa: o GT de Educação Ambiental da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade, e o GT de Educação Ambiental da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, ambos criados em 2002. Os educadores ambientais passaram a constituir-se também como pesquisadores. Por outro lado, surgiu recentemente uma nova categoria de problemas no campo da educação ambiental, que se caracteriza pelo encolhimento da área em diversos programas de pós-graduação do país, diante da forte demanda produtivista que assola a academia, expondo uma grave contradição: por um lado, a crescente demanda por formação profissional densamente qualificada, por outro lado, o encolhimento das linhas de pesquisa em educação ambiental nos programas de mestrado e doutorado.


No âmbito da produção teórica acadêmica, se há um país que o recado de Tbilisi (Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental promovida pela Unesco em parceria com o Pnuma e realizada na cidade russa de Tbilisi em 1977, considerada o principal marco histórico da área) acerca da necessidade de articulação interdisciplinar na educação ambiental envolvendo os aspectos físicos, biológicos, sociais, econômicos, culturais e políticos da questão ambiental, pegou, esse país é o Brasil. Esse período, no que diz respeito ao âmbito da produção conceitual, demarca a substituição dos esforços que buscavam definir um conceito de educação ambiental para outra fase, o de caracterizar distintas correntes político-pedagógicas na área. Se antes se buscava construir um conceito padrão definidor de tudo aquilo que engloba e representa a educação ambiental, passou-se a prospectar as diferenças entre as correntes de pensamento que inspiram as experiências pedagógicas propriamente ditas. O fato é que a produção intelectual brasileira passou por uma ampliação considerável, acompanhada por um adensamento dos debates nos eventos científicos.


Uma vertente de pensamento que se ampliou bastante nestes vinte anos – a crítica, emancipatória e popular – busca, na devida contextualização do fenômeno, ultrapassar o reducionismo ecológico que predomina nas práticas pedagógicas vinculadas à educação ambiental de cunho conservacionista/tecnicista, resultado de uma paulatina aproximação dos educadores ambientais com as ciências sociais e da educação e com o pensamento crítico que busca interpretar a questão ambiental por meio de sua politização. Mas, com isso, outra novidade que despontou no cenário foi o surgimento de disputas conceituais por significação da missão última da educação ambiental, gerando, inclusive, algumas desavenças entre os pontos de vista dos educadores ambientais.


Educação ambiental como disciplina

Com relação àquilo que divide as opiniões entre os educadores ambientais, o grau de conflituosidade interno de maior envergadura que estava presente nos anos 1990 (e talvez o único conflito realmente expressivo interno ao campo da educação ambiental no período histórico da Rio 92), que girava em torno da polêmica disciplinarização na escola (assunto agora debatido também no interior da escola, por atores sociais vinculados ao debate sobre o currículo escolar), migrou para outro cenário, o da constituição da esfera pública governamental nacional da educação ambiental. A conflituosidade passa a girar em torno da instrumentalização dos programas públicos de educação ambiental fortemente determinados pela conjuntura político-econômica do encolhimento do Estado e da prevalência das forças de mercado como mecanismos indutores de políticas públicas, de onde se formula a pauta programática esperada para a função da educação ambiental.


Enfim, podemos testemunhar diversas mudanças que ocorreram ao longo de vinte anos na educação ambiental brasileira, mas, por outro lado, existem também alguns aspectos que não mudaram desde a Rio 92, e que talvez possam ser vistos como futuros desafios: é notável, por exemplo, a ausência, ainda hoje, de debates acerca da formação e profissionalização em educação ambiental. De vez em quando surge uma voz ou outra em alguma rede de educação ambiental, levantando a necessidade de haver um currículo mínimo e certificação oficial para um profissional ser reconhecido como educador ambiental e poder atuar profissionalmente com esse rótulo institucional, assinando por projetos públicos e privados na área. A questão suscita um rápido e superficial debate, polarizando argumentos a favor e contra a profissionalização da educação ambiental como uma carreira formal, mas que de imediato cai no esquecimento e não gera nenhuma consequência.


Um segundo aspecto que parece não ter mudado, que soa como um traço da “pobreza política da educação ambiental”, se traduz na entrada de qualquer pessoa que se propõe a trabalhar com esse campo do conhecimento, simplesmente a partir do senso comum, julgando que a educação ambiental se resume a práticas de sensibilização ecológica e campanhas de reciclagem, desprezando todo acúmulo histórico dos referenciais teórico-metodológicos desde os anos 1970; trazendo embutido o risco da fácil cooptação ideológica para o desenvolvimento de práticas educativas ingênuas e românticas, dificultando o projeto radical de abandono da prevalência hegemônica para tornar-se um projeto alternativo emancipatório, realmente questionador e transformador da estrutura civilizatória contemporânea e seus mecanismos de reprodução.


Outro aspecto que parece não ter mudado foi o grau de mobilização dos educadores ambientais em torno de grandes temas e eventos. Observa-se, nitidamente, que a comunidade dos educadores ambientais esteve intensamente mobilizada nestes vinte anos, reagindo à altura nos momentos necessários. E um dos objetos mais caros dessa entusiasmada mobilização permanece vinculado à defesa do "Tratado de educação ambiental para sociedades sustentáveis e responsabilidade global", reafirmando-o como a grande carta de princípios adotada por significativa parcela dos educadores ambientais e pelo próprio Programa Nacional de Educação Ambiental, desde a Rio 92, quando foi formulada no âmbito do Fórum Global, o encontro paralelo da sociedade civil à Conferência do Rio.


Pode-se dizer que uma das grandes mudanças que ocorreram no campo da educação ambiental nestes vinte anos foi o ingresso dos educadores ambientais, pelo menos os mais nucleares e históricos no campo, na arena política. O processo de aprendizagem política de atores sociais fortemente vinculados ao universo educacional-ambiental está em curso, e uma certeza é que este campo nuclear constitui-se como uma combativa e atuante arena de resistência ideológica, de projeto societário alternativo ao capital, reunindo forças progressistas e emancipatórias, que tem muita clareza sobre os interesses em jogo, sobre os projetos civilizatórios em disputa.


Contudo, permanece ainda um desafio a enfrentar saber o saldo que a educação ambiental proporcionou à sociedade brasileira ao longo desses vinte anos. O que ela foi capaz de realizar, em quê ela influenciou no pensamento e nas práticas sociais do brasileiro. Ou seja, que mudanças societárias de fato ocorreram.


Este breve e despretensioso ensaio, que retrata o processo contraditório de amadurecimento do campo da educação ambiental no Brasil – por combinar simultaneamente avanços com retrocessos –, não permite uma abordagem mais aprofundada do que isso representou ao longo de duas décadas no Brasil.


Por esse motivo, para se obter um maior adensamento sobre o tema, recomendamos a leitura de três obras:


-A implantação da educação ambiental no Brasil - Silvia Czapski

-Os diferentes matizes da educação ambiental no Brasil – 1997/2007 - Silvia Czapski

e

-Educação ambiental no Brasil: formação, identidades e desafios, de Gustavo Lima.


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Philippe Pomier Layrargues é professor adjunto do curso de gestão ambiental da Universidade de Brasília (UnB).


Nota de rodapé
1. Agradeço as valiosas e generosas colaborações de Antonio Fernando Guerra, Carlos Frederico B. Loureiro, Gustavo Ferreira da Costa Lima, Irineu Tamaio, Luiz Antonio Ferraro Júnior e Michèle Sato para a realização desta reflexão.


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Artigo retirado de:
http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=75&id=938

domingo, 18 de março de 2012

Fotógrafo Andarilho de um planeta não revelado

Sebastião Salgado
fala sobre o ambicioso projeto "Gênesis"

Laura Greenhalgh, de O Estado de S. Paulo









Tião em seu "estúdio" fotográfico.




Sebastião Salgado tem o mundo impresso na memória. E pode comprovar isso. Aos 65 anos de idade, 36 deles dedicados à fotografia, cruzou o planeta em todas as direções, inclusive emburacando-se pelos lugares mais recônditos, para compor este que já é certamente um dos maiores acervos autorais de imagens de que se tem notícia. Mas Sebastião Salgado, pasmem, garante na entrevista a seguir que está ficando velho. E que um dia pode parar de fotografar. A previsão surpreende na voz que ainda se exalta, e se transporta, ao explicar as andanças pelo mundo em busca de rostos, gestos, corpos, lugares. "Para fazer fotografia documental é preciso ter sempre a ‘vontade de ir’. E eu tenho."

Em 2004, este mineiro de Aimorés, famoso no mundo inteiro pelo que vê e dispara de sua Leica (depois pôs-se a fazer o mesmo da Pentax e agora da Canon) anunciou que passaria oito anos fotografando lugares prístinos, ou seja, paraísos terrestres habitados por agrupamentos humanos cujos laços com a natureza são ainda primordiais. E que o projeto receberia o batismo bíblico de Gênesis. Pois a empreitada vai chegando ao fim. Prestes a embarcar em um navio para a Geórgia do Sul, contornando as Malvinas, Sebastião Salgado - Tião para os próximos - está quase no fim da série de 32 reportagens fotográficas por cinco continentes, numa geografia estranha aos roteiros turísticos convencionais. Longe disso: o economista que se bandeou para a fotografia aos 29 anos, hoje admite escalar a antropologia visual.

Não o faz sozinho. Tem a seu lado a arquiteta Lélia Wanick Salgado, a Lelinha, para Tião, mulher, mãe de seus dois filhos e "minha sócia na vida". Isso diz tudo. Foi com a Leica de Lélia que começou a fotografar nos anos 70 (ambos estudavam e moravam em Paris). Foi com o apoio de Lélia que trocou de profissão (era economista da Organização Internacional do Café e decidiu procurar emprego em agências fotográficas como Gamma, Sigma e Magnum) e foi com Lélia que montou, nos anos 90, a Amazonas Images, especializada em Sebastião Salgado. É Lélia quem edita os livros de fotografia dessa grife consagrada - entre eles, Trabalhadores, Terra, Êxodos e tantos outros - assim como é Lélia quem arquiteta e controla a montagem de exposições do marido pelo mundo (dentro de alguns dias vai inaugurar uma em Tóquio). Por muito menos, Lelinha já seria "a mulher de verdade", como diz o samba famoso, só que tem mais: ela preside o Instituto Terra, um vasto e bem-sucedido projeto ambiental, concebido com o marido na região do Vale do Rio Doce.

Da experiência direta com o ambientalismo veio a vontade de fotografar o planeta em lugares onde poucos pisaram, como explicará Sebastião. Gênesis estará concluído no ano que vem e, a partir daí, começam exposições de imagens do projeto que, a depender da vontade do casal Salgado, serão eventos ao ar livre, em grandes parques, por várias capitais do mundo. As fotografias também serão tema de um filme de Wim Wenders, com trilha do jovem compositor americano Jonathan Elias. Nestas páginas, quatro imagens dão apenas uma amostra do que vem por aí. Como o grupo de índios Zo’e, do Pará, povo que hoje não chega a 280 pessoas - vistos na mata, com seus cocares brancos, em fotografia jamais divulgada. Cenas de uma beleza desconcertante para ‘ocidentais’ tão domesticados.


Foto: Sebastião Salgado/Amazonas Images



Você tem dito que o Gênesis é seu último grande projeto fotográfico. Por que estabelecer o limite?

Digo que é o último projeto desse porte. Falo de projeto que leva anos para se concretizar, com viagens às vezes muito duras, desafios como o de andar 850 quilômetros até chegar a um determinado ponto. É preciso estar muito motivado e ter enorme disposição para encarar tudo isso. Não que eu vá parar de fotografar, mas encarar projetos nessa escala já pesa na minha idade. Tento me manter em forma, faço ginástica todos os dias, cruzo Paris de bicicleta, só que chega aquela hora em que o joelho começa a não querer obedecer. Como também vai chegar a hora em que vou preferir editar o meu material, talvez esse seja o trabalho mais importante que eu tenha pela frente. Sempre trabalhei muito, produzi um volume incrível de imagens. Tenho mais de 500 mil cópias de leitura, fora a imensidão de negativos que ainda não mexi. E uma imensidão de fotos paralelas.



Como assim?

Por exemplo, Lélia e eu começamos a editar nossas fotografias de família, material feito ao longo das nossas vidas, com nossos meninos crescendo. Então, penso um dia trabalhar no meu acervo, considerando que a idade vem chegando, que eu posso vir a me repetir e que os novos fotógrafos estão aí, vamos deixar lugar para eles. Tenho pensado nisso tudo. Inclusive na pertinência dos meus trabalhos. Falo de pertinência histórica, ideológica, pessoal. Hoje só faço aquilo com o qual tenho profunda identificação.



De que suporte financeiro você dispõe ao fazer um projeto das dimensões do Gênesis?

Temos o suporte de várias publicações: Rolling Stone, Paris Match, Guardian, La Republica, entre outras. Temos o apoio financeiro de duas fundações americanas, como também da Vale, nossa parceira de longa data. Agora mesmo vou passar dois meses na Geórgia do Sul e vem sendo montado um barco para essa reportagem, partindo das Malvinas. São viagens caras desde a fase da preparação. Quando comecei a propor projetos de três, cinco anos, os parceiros não entendiam bem. Hoje creio que ganhamos credibilidade. Quando falo para esses veículos que passarei oito anos fotografando e que, de tempos em tempos, eles terão minhas reportagens, ninguém duvida de que isso aconteça.



Depois de ter fotografado intensamente nestes últimos 36 anos, de propaganda de carro à vida dos garimpeiros, como é que você definiu o escopo do Gênesis? Por que buscar os lugares intocados do planeta?

A ideia do Gênesis nasce da experiência no Instituto Terra, uma reserva ambiental que começou a surgir no momento em recomprei as terras que foram da minha família, na região do Vale do Rio Doce. Ali passamos a lidar com o tema da biodiversidade, já optando pelo reflorestamento de uma área que estava bem degradada. As primeiras 500 mil mudas foram doadas pela Vale, com quem também nos associamos para fazer um programa de educação ambiental de longo alcance, o Terrinha. Lá na região, replantamos 1,5 milhão de árvores. Então, foi lidando com esse tipo de coisa que bateu a vontade de fotografar o planeta. Desenvolvemos um conceito, elaboramos o projeto fotográfico e fomos embora. Lélia e eu fizemos um sem-número de leituras, procuramos organizações ambientalistas pelo mundo. Por exemplo, grande parte da pesquisa foi feita nos arquivos da Conservation International, em Washington. Trabalhamos ainda com o Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas, em Nairóbi, e com a Unesco. Quando iniciei o projeto por Galápagos, em 2004, estava tudo planejado para os anos seguintes.



E por que Galápagos? Tem a ver com Darwin?

Exatamente. Eu tinha vontade de entendê-lo. Já havia lido a teoria da evolução das espécies, sobre a viagem do Beagle, mas lá em Galápagos, hoje um patrimônio da humanidade, fica muito mais fácil compreender Darwin. Porque é possível conferir, visualmente, como uma determinada espécie se desenvolve de maneira diferente de uma ilha para outra. Em Galápagos você tem um microcosmos que retrata o universo. Acabei ficando por lá mais tempo do que o próprio Darwin. Ele passou 47 dias lá, eu passei 90. Tive autorização da Fundação Charles Darwin e do Parque Nacional de Galápagos para visitar todas as ilhas do arquipélago.



O que você privilegia no Gênesis: o homem, o bicho ou a natureza?

Ainda é o homem. Se você imaginar que 30 a 40% do projeto são fotos de pessoas e que a natureza tem muito, muito mais espécies, então o humano prevalece. Fotografei agrupamentos que vivem, em relação ao planeta, naquele mesmo equilíbrio dos tempos primordiais. Este foi o meu critério, por isso desisti de fotografar comunidades esquimós no Alasca ao ver que vários grupos já caçam com rifle e há chefe esquimó que tem até avião particular.



Afinal, encontrou esse humano 100% "in natura"?

Há vários grupos assim. Os mentawai, que vivem na ilha de Sumatra, na Indonésia, ainda mantêm uma relação tão forte com a natureza a ponto de fazê-la "deus". É preciso pedir permissões à natureza o tempo todo. Quando fotografo essas pessoas, às vezes preciso isolá-las do contexto para fazer um bom retrato. Posso improvisar um estúdio na mata com folhas, ou tecidos, fundos relativamente neutros. Pois para fazer um estúdio precisei tirar algumas palhas das casas mentawai. Tivemos que pedir autorização "divina" e a resposta só veio depois que a comunidade leu o futuro nas tripas dos animais, como é a tradição. Daí uma cobra entrou na nossa casa e meu assistente teve que matá-la. Pronto, os mentawai não gostaram, porque seria um aviso de que as coisas não estavam indo bem. Eles atravessam hoje um estágio evolutivo interessantíssimo: estão agora domesticando plantas e animais. Trabalhei também com os chamados bushmen, de Botswana e da Namíbia, que vivem como há 50 mil anos. São coletores-caçadores.



Sempre viaja com intérpretes?

Sim. No caso dos Zo’e, no Pará, fui com uma estudiosa da língua deles.



Existe um estranhamento quando você trava o primeiro contato com um humano que vive num estágio evolutivo tão remoto e diverso do seu?

Não. Primeiro porque, mesmo que demore um certo tempo, acabo sendo aceito ali. Como com o grupo, durmo onde o grupo dorme, me desloco com ele, enfim, passo a fazer parte desse núcleo. As reações, a maior parte delas, são previsíveis, porque são humanas, ainda que não se entenda uma conversa feita na base de estalos de língua. Eu nunca vi relações tão amorosas com os filhos quanto em grupos coletores-caçadores. Nos Zo’e, por exemplo, não existe o conceito do "não" para pôr limites nas crianças. Um dia eu estava fotografando e o indiozinho não parava quieto, não me deixava em paz, pulava pra cá, pra lá, derrubava coisas... daí eu pedi à intérprete que falasse com a mãe dele. A intérprete hesitou, mas falou. E a mãe ficou desesperada, porque não sabia me atender naquilo que eu pedia. Entre estes índios, padrões de comportamento mais maduros e responsáveis se desenvolvem naturalmente, à medida que pessoas crescem e envelhecem.



Você mostra as fotos que faz dessas pessoas para elas próprias?

Para os Zo’e cheguei a mostrar no visor da máquina digital. Para outros grupos, não, e nem terei como mandar as fotos, pois são nômades. Os índios adoraram, pois, como em todos os grupos visitados, sem exceção, demonstram grande preocupação com a estética. As mulheres, todas, andam com um espelho. E a todo momento arrumam o cocar de penas de urubu branco.



Mas são índias com espelho?

A Funai deu para eles quatro instrumentos de branco: o espelho, do qual as mulheres não desgrudam, lanterna, facão e faquinha. O caso da lanterna é interessante: porque ela já vem com pilhas e a Funai só dá outras mediante a entrega das velhas. A lanterna foi de grande ajuda, pois havia muita picada de cobra em caçada noturna.



Você se refere ao seu trabalho como reportagem e fala das fotos como documentos. Qual é o limite entre a foto documental e a foto artística?

O que é artístico? Eis o problema. Recentemente vi uma exposição de arte africana em Barcelona, num belo museu. A maioria das obras era de uso cotidiano, cestas, jarros, ferramentas agrícolas, peças que são vendidas por milhares de euros. Vá conferir no Museu d’Orsay, em Paris, os salões dedicados à arte da África e da Oceania: 90% do que é exposto são utensílios de uso diário ou religioso. Hoje aumenta o número dos meus colecionadores, minhas fotos vêm ganhando preço no mercado de arte, mas não perco de vista o que faço. Como aquela foto da invasão do MST na Fazenda Giacometti, no Paraná, numa situação-limite, às 5 da madrugada, e eu ali, com um filme de 3200 ASA, quase sem luz para operar. Fiz um documento. Um dia o MST não terá mais força, ou desaparecerá, eu mesmo vou desaparecer, mas a fotografia permanecerá. Será referência da nossa sociedade, ganhando dimensão artística. Dizer que faço foto de arte, ah, isso não rola comigo. Porque sou repórter, tenho carteira de jornalista, nossa agência, a Amazonas Images, é de imprensa.



Como você mesmo diz, cresce o número dos seus colecionadores. Sebastião Salgado virou um clássico?

Estou me tornando. No Gênesis, pela primeira vez na vida admiti fazer fotografias com número limitado de reproduções. Porque sempre fotografei pessoas em suas situações de vida, jamais tive qualquer problema com direitos de uso de imagem e sempre distribuí minhas fotos em séries ilimitadas, o que reduz muito o preço delas. Agora quero lidar com número limitado de cópias, reproduções feitas em papel platinum, caras, porém maravilhosas. Creio que esse trabalho merece. Já fizemos algumas cópias e, no futuro, pretendemos lançar as séries limitadas. Aí, sim, será a estreia no mercado de arte.



Especialmente nas fotos de paisagem do Gênesis você parece mais formal, preocupado em mostrar texturas, realçar formas, captar nuances tonais.

Fui acusado de estetizar a miséria. E sabe por quê? Porque minhas fotografias sempre foram bem compostas. Sabe de onde vêm as texturas? Do filme de imprensa que sempre usei, o TRI-X, que dá grão. Quase só fotografo na contraluz e demorei a perceber isso. Um dia a Lélia montou uma exposição minha em Havana e um professor de uma escola de artes em Cuba veio visitá-la com os alunos. Eu o ouvi dizer a eles ‘este fotógrafo aqui só trabalha contra a luz’. Daí me toquei! Fazia aquilo instintivamente, sem me dar conta de que é na contraluz que se destacam os relevos, pois a zona de luz e sombra permite criar a noção de volume. Quando você me fala das paisagens que tenho feito, não significa que esteja procurando um estetismo na natureza. É que a natureza é profundamente estética.



Dê exemplos.

Fotografei os dois vulcões mais altos da placa euro-asiática, na península da Kamchatka, na Rússia, com mais de 4 mil metros de altura. Acordo de manhã, com aquelas nuvens fantásticas no céu, aquilo me deu a impressão de estar no fundo do mar enxergando o topo de uma montanha. Vi chuva de luz em Kamchatka, tal a beleza dos raios solares atravessando aquelas nuvens. Ora, não preciso ser esteta diante desse espetáculo. Procuro registrar os prístinos, locais no mundo onde poucos pisaram, então é natural que essas imagens nos provoquem sensações fortes. Como a foto que fiz de um iceberg na Antártica, que mais parecia um castelo medieval na Escócia, no entanto, trata-se de uma escultura mutante da natureza.



Mas você concorda que algumas dessas imagens beiram o abstrato?

Pode ser. A rigor, sou um esteta desde o início, porque não se esqueça de que a fotografia é uma linguagem formal: você tem um plano, tem um fundo, tem um sistema de linhas, é preciso organizar esse negócio. O bom fotógrafo é aquele que domina as suas variáveis.



Como é que você ‘ataca’ a cena? Porque as variáveis também são externas: por exemplo, nuvens dançam no céu. As patas dos animais movem-se pelas matas.

São tempos internos distintos. Dou como exemplo a foto que fiz da mão da iguana. Eu vi aquela pata, que é uma mão na verdade, com cinco dedos e tudo. E quis fotografá-la, mas teria de ser com uma lente macro, bem de perto, para captar o detalhe. A iguana como que autorizou a foto, porque, normalmente, é bicho que não aceita aproximação a menos de 2 metros. Tive que ir me chegando, de joelhos, com delicadeza: ela me observava, eu a observava; eu avançava um pouco mais, ela sabia que alguma coisa estranha iria acontecer, mas aceitava; daí finalmente fiquei bem perto daquela mão e fiz a foto. Aí fui recuando, rastejando para trás, bem devagar. E ela me observava. Quando uma foto como esta é finalmente feita, o cansaço que bate é total. Porque, ali, o fotógrafo sabe que tem a possibilidade de fazer uma fotografia incrível, mas, numa fração de segundos, poderá perdê-la. Ou não. São extenuantes essas situações.



É o "momento decisivo" de Cartier-Bresson?

Sim e não. Esse conceito é parcialmente válido para mim, porque trabalho noutra realidade. O conceito de "momento decisivo" em Cartier-Bresson é de corte representativo: só existe aquele momento, o antes não é bom, e o depois, também não. Para mim isso não é verdade. Penso num fenômeno fotográfico feito de aproximações e ajustes, um fenômeno em evolução, com envolvimento das pessoas, dos lugares, com muitas conexões, enfim.



Quando você olha suas fotos de publicidade reconhece nelas o mesmo Sebastião Salgado do Gênesis?

Claro. Nunca fiz foto de publicidade que eu não me sentisse realmente motivado a fazê-la. Isso vale também para meus tempos nas agências Gamma, Sigma, Magnum. Quando inauguraram o aeroporto de Malpensa, em Milão, fui contratado para fazer fotos de promoção do lugar, mal aceito pela população do norte da Itália. Seriam fotos para estampar pôsteres distribuídos pelo país. Adorei a encomenda, não só porque me pagaram uma fortuna, mas porque eu tive a oportunidade de conhecer o que cerca e envolve um aeroporto. E saí fotografando. Descobri uma "cidade" que emprega 15 mil pessoas. Tem de tudo lá: do pessoal da limpeza bruta ao pessoal dos ajustes mais finos. Vi as famílias desembarcando, o encontro dos parentes, fabulosas histórias de vida. Descobri um grupo de aposentados, fanáticos por avião, que passa os dias controlando o tráfego aéreo das cercas de arame que circundam Malpensa. Propus aos meus clientes que fizessem um livro com aquele material. E toparam. Foi uma experiência genial.



Como você se sente quando dizem que só faz fotografia engajada?

Isso é um comentário limitador. Não sou um fotógrafo militante, embora me engaje profundamente naquilo que eu faço, quase como forma de vida. O que é muito diferente. Tenho minha ideologia, que pode ou não ser aceita, e fotografo tudo, da natureza ao carro da montadora, com a mesma doação pessoal.



Como é fotografar gente célebre?

Fiz e ainda faço isso. São momentos especiais. Porque peço sempre um tempo maior para fazer portraits, não aceito correrias. Como no caso do retrato do Bill Clinton para a Vogue americana. Pedi uma semana com ele, se não fosse assim, nada feito. Muitas vezes fiquei amigo dos fotografados. Como no caso do Italo Calvino. O New York Times pediu um retrato dele, viajei até Roma, me instalei num hotel e fui para a casa do escritor. Apertei a campainha, Italo veio até a porta e perguntou se eu era o fotógrafo do Times. Daí indagou quanto tempo eu precisaria para o serviço, já dizendo que uma hora estaria de bom tamanho. Eu expliquei: "Não, preciso de três dias." Ele reagiu de pronto, disse que jamais daria três dias da vida dele para mim ou para o Times. E eu rebati, então não dá para fazer. Estávamos nessa discussão quando chegou a mulher dele, uma argentina decidida, e botou ordem no pedaço. Não só ordenou ao Italo que ficasse à minha disposição o tempo que fosse preciso, como ordenou que eu me mudasse para a casa deles. Fotografei-o em casa, pelas ruas de Roma, fui para a casa deles em Paris, assim nasceu uma amizade que durou a vida inteira do Italo. Retrato precisa de tempo. E quem me pede para fazer um já sabe disso.



E a sua fidelidade ao preto e branco? Justamente por andar pelo mundo fotografando paraísos, muita gente lhe cobra a foto em cor.

Preto e branco é o que sei fazer. E não sou o único. Tem uma porção de fotógrafos que continuam fiéis a isso. Vou citar apenas um: o Cristiano Mascaro, que é um megafotógrafo, só produz em preto e branco. Não sei fazer o que ele faz, mas tanto ele quanto eu nos identificamos com essa abstração. No P&B aprendi a lidar com densidade, a controlar a revelação, a fazer minhas reproduções e mesmo hoje, já inteiramente adaptado à tecnologia digital, sigo no mesmo caminho. Tanto que programo a máquina digital de tal forma que, através dela, só vejo em preto e branco. O descarte da cor se dá logo no início. Passei a minha vida aperfeiçoando, não vou abandonar isso agora.



No entanto, você fez a passagem da máquina analógica para a digital com tranquilidade.
Só mudei o suporte, porque o processo continua rigorosamente o mesmo. Trabalhei quase toda a minha vida com Leica, depois, como precisava de negativos maiores, passei para Pentax. E agora fotografo com Canon. Mas, digitais ou analógicas, as máquinas são as mesmas, como as lentes também.



Por que diz que o processo não mudou?

Explico: fotografo em digital, daí tenho dois assistentes que descarregam os cartões lá em Paris e preparam para mim os contatos. Só então começo a seleção de imagens, porque não sei vê-las em computador, necessito ter os contatos e os meus, sinceramente, são lindos. Bom, edito os contatos, tenho um assistente só para fazer as cópias de leitura, e daí entram outros dois assistentes, responsáveis pelas cópias finais. Sobre essas cópias fazemos negativos, pois se por acaso perder imagens no armazenamento digital, tenho lá meus negativos muito bem guardados.



A tecnologia da imagem poderá um dia subjugar o olhar do fotógrafo?

Não creio, principalmente num trabalho como o meu, que é jornalístico e depende da iniciativa pessoal. Só faz fotografia documental quem tem aquela "vontade de ir". Isso é fundamental. O resto são as tais variáveis que devemos aprender a dominar. Muitas vezes acordo de pesadelos em minha casa, em Paris, sem saber onde estou. Isso me dá aflição. Mas quando me encontro num canto remoto do mundo, a sensação que tenho é a de saber exatamente onde estou.



E a manipulação de imagem, hoje tão mais fácil, tão mais imperceptível e tão mais incontrolável no mundo digital? Isso é um pesadelo para você?

Mais ou menos grosseiras, manipulações de imagem sempre existiram, por que vou me preocupar com isso? A verdade do fotógrafo é aquela fração de segundo. Se fizerem manipulação sobre isso, então não estaremos mais falando de fotografia. Daí nem me compete opinar.




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fonte:
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,fotografo-andarilho-de-um-planeta-nao-revelado,433790,0.htm





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update: 09-04-2012
SEBASTIÃO SALGADO:
MANEIRAS DE VER A AMÉRICA LATINA

John Mraz
Tradução de Geraldo A. Lobato Franco

Sebastião Salgado tem-se tornado legendário no fotojornalismo. Brasileiro de nascimento, de pais da classe média, formou-se em Economia e trabalhou algum tempo no Ministério da Fazenda, deixando o país em 1969 devido à participação na luta estudantil contra a ditadura militar. Foi para Paris onde seguiu cursos doutorais naquela disciplina entre 69 e 71, época que descobriu a fotografia graças a uma câmera que Léila Wanick, sua mulher, havia comprado para os estudos dela em Arquitetura. Empregado na Organização Internacional do Café, baseada em Londres, começou a tirar fotos em numerosas viagens que fez à África, enquanto pesquisava a diversificação de plantações da arrubiácea; afinal, dali em diante cativou-se com a arte: “Quando voltei a Londres, as fotos me deram dez vezes mais prazer que os relatórios econômicos que tinha de escrever.”

A sua final decisão sobre a mudança de carreira foi motivo de luta por um par de anos quando finalmente deixou o emprego para dedicar-se à fotografia exclusivamente. Começando como fotojornalista autônomo para as agências Sigma e Gamma, passou para a Magnum, a mais prestigiosa delas, base de trabalho de grandes nomes como Robert Capa, Henri Cartier-Bresson e Eugene Smith, para mencionar uns poucos. Em 1994 deixou a Magnum e montou a Amazonas Images. À parte a onipresença de seu trabalho fotográfico em revistas e jornais, tem publicado livros de distribuição considerável, montado importantes exposições fotográficas e recebido um reconhecimento na medida de sua significativa produção.

Mesmo tendo coberto as guerras na Angola e no Saara Espanhol, os israelitas aprisionados em Entebe, os incêndios de poços de petróleo no Kuwait e a tentativa de assassinato de Ronald Reagan, conhecem-no melhor pelos seus projetos documentais de longa duração sobre a fome e os trabalhadores migrantes ao redor do mundo. A pesar da enorme rede lançada, a América Latina tem sido a sua pedra de toque; afirma que tem sempre percebido e fotografado o mundo com o seu olhar Latino-americano:

Afinal você fotografa com tudo o que você é. Venho de um país subdesenvolvido onde os problemas sociais são muito intensos. E assim torna-se inevitável que as minhas fotos reflitam isso... creio que exista uma forma latino¬americana de se ver o mundo. É algo que não se pode ensinar, porque simplesmente faz parte de você.

Começou a produzir imagens da América Latina em 1977 com o seu primeiro livro focalizando a área, Other Americas (Outras Américas), aparecido simultaneamente em inglês, francês e espanhol, em 1986.4 A fome que observara no Nordeste brasileiro moveu-o a voltar a fotografar a fome do Sahel africano (onde havia iniciado sua carreira de fotojornalista em 1973 cobrindo a seca da região) e em 1984-85 colaborou no grupo francês Médicos sem fronteiras, na produção de Sahel, o homem em desgraça. De 1986 a 1992 dedicou-se a fotografar o trabalho humano em todo o mundo, um empreendimento que resultou numa enorme exposição e um livro robusto, ambos intitulados Workers (Trabalhadores). Em 1993 voltou as suas câmeras ao compromisso com os refugiados e migrantes, produzindo a enorme exposição Migrations (Migrações) exibida e publicada em 2000. No trabalho em projetos internacionais não negligenciou a América Latina: Salgado tornou-se ativamente absorvido com o trabalho do movimento dos Sem Terra, a revolta dos camponeses brasileiros esbulhados, preocupação que resultou num segundo livro sobre a região: Terra: Struggle of the Landless (Terra: as lutas dos Sem-terra).

Enquanto o trabalho de Salgado tem fornecido muita água aos moinhos dos críticos e intelectuais, raramente selecionaram-no como representação local, quanto a sua transformação no tempo. Refletir sobre como Salgado tem mostrado a sua pátria oferece uma oportunidade única para se examinar as formas pelas quais um criador de imagens de primeira classe dessa região escolhe mostrar o universo do qual surgiu. Sublinharei as suas caracterizações latino-americanas contrastando a representação de Other Americas, Terra e Migrations, pois acredito que uma considerável mudança de tom e ênfase tem ocorrido na trajetória desses trabalhos. Também irei comparar as formas criadoras de imagens de sua terra natal às de fotógrafos mexicanos seletos como Manuel Álvarez Bravo, Nacho López, Héctor García e os que descrevi como Os Novos Fotojornalistas. Ao justapor essas visões divergentes poder-se-á mostrar o perfil das formas distintas com que a região tem sido e pode ser representada.

Salgado levou sete anos (de 1977 a 1984) vasculhando a América Latina para produzir o que descreveu como sendo “uma exploração meditativa das culturas camponesas e da resistência cultural”. Não obstante as suas boas intenções, a impressão avassaladora que se tem, deixada pelas suas fotos em Other Americas, é que tudo ali seja tristeza, miséria e ruína. Paralela ao foco trágico está a tonalidade dominante de mistério. Tudo aparece contido numa incompreensível e inexplicável delitescência, tornando enigmática a fome, a pobreza e a morte que aparecem no livro. Evidentemente esses cânceres sociais não são o resultado das tremendas diferenças sociais da região, porque não estão documentados nas fotos do livro. Nem são eles produto das megacidades, sujas e superpopuladas, sem os mínimos serviços, pois as favelas, sempre em crescimento, também ali não aparecem. Os trabalhadores urbanos e suas famílias que vivem e trabalham nas metrópoles – e que hoje constituem a maioria da população – estão ausentes em Other Americas de Salgado. Ao assestar as suas lentes às culturas rurais, afirmou que tais problemas eram simplesmente parte da paisagem. Mas, qual seria o significado desse enfoque?

A mais imediata e importante conotação é que esses problemas sejam naturais à América Latina, enraizados em tradicionais formas de ser. Quando Salgado produzia Other Americas, não creio que realmente acreditasse que a miséria da região fosse produto da natureza, mas sim de forças históricas, tais como o capitalismo dependente, o imperialismo e o neo-liberalismo. Sinto-me tentado a opinar que caiu numa cilada comum aos latino-americanos que crêem que devam representar as suas pátrias em termos pitorescos, até grotescos, que com freqüência constituem o discurso aceito e corrente nos países em desenvolvimento para se discutir o Terceiro Mundo – tendência que tem se evidenciado em muitas representações do México, de 1920 ao presente. Em Other Americas, Salgado ofereceu aos seus consumidores na Europa e nos Estados Unidos o que esperavam e queriam, da mesma forma que fizeram os primeiros vendedores de estereótipos: o diretor de cinema mexicano Emílio Fernández El Indio e seu cinegrafista Gabriel Figueroa, cujos filmes – populados por estranhos indiozinhos de pijamas brancos, charros (cowboys) a cavalo sob os seus sombreros de abas largas e camponesas envolvidas em chales exóticos – começaram a impressionar os juizes de filmes de festivais internacionais, há sessenta anos.
Entretanto, em Other Americas, Salgado transportou-os ainda mais adiante ao ligar a alienação às culturas camponesas. A tristeza, a miséria, a morte e o enigma estão onipresentes no conteúdo dessas imagens; a alienação se expressa, em essência, via estruturas formais: luzes e sombras separam os indivíduos entre si, janelas e portas dividem as pessoas ao invés de comunicá-las, olhares furtivos se entrecruzam, mas não se encontram. Por que motivo essa alienação? Comumente associamo-la à industrialização e urbanização, à mecanização da vida, porém Salgado ignorou solenemente a América Latina moderna em seu livro, focalizando a vida rural. Desta forma poderia vender ao mundo desenvolvido a alienação que tão bem conhece com um toque interessante, vestida em roupagem exótica de través a um pano de fundo pitoresco. Os europeus e norte-americanos que compram essas imagens publicadas, teriam pouco interesse em fotos do proletariado industrial latino¬americano, pois conhecem-no muito bem em suas próprias sociedades. Mas a alienação dos indivíduos que incorporam a alteridade (otherness) orientalista, parece claro, é um animal decididamente de outra coloração.

Um pai boliviano abraçado por suas filhas: porque parece tão inamistoso e ressentido ao devolver o olhar pasmo da câmera pelo canto dos olhos? Pessoas que se reúnem numa festa de casamento no Brasil: porque parecem tão sombrias? Um casal de equatorianos que sobraça um cachorrinho peludo branco e um passarinho, enquanto ao fundo nas montanhas se formam nuvens e fazendo-lhes parecer angustiados, cansados e preocupados. Enfim, não posso deixar de surpreender-me se a sua criação de Other Americas foi em parte tentativa de aplicar a estética existencial de The Americans, de Robert Frank à América Latina. O retrato dos Estados Unidos de Frank como uma cultura áspera, triste e alienada mostrou uma percepção desconhecida até a época de sua publicação no fim dos anos 50, considerada por ter redefinido a fotografia norte-americana, num trabalho que foi reimpresso muitas vezes. Não seria invulgar que Salgado buscasse ali a inspiração para construir a aparência de Other Americas.

Comparar a representação de temas particulares neste livro com o tratamento dado por fotógrafos mexicanos pode nos conduzir à distinção de certas diferenças de ênfase. Por exemplo, Salgado tem obsessão pela morte: às vezes resvala no grotesco – um brasileiro, com as pernas abertas, defronte a uma cova onde jaz, fora do caixão, o cadáver de uma mulher; d’outras vezes nota-se a pura angústia – umas mexicanas choram num funeral; com freqüência é enigmático – um índio peruano gesticula incompreensivelmente num cemitério deserto; ainda, pode evidenciar alienação – brasileiros colocados em covas separadas de modo a enfatizar a separação entre eles. Em reflexão a ubiqüidade, a morte tem sido um importante assunto para os artistas mexicanos e expressões culturais de grande riqueza têm surgido ao seu redor, tais como as famosas litografias de José Guadalupe Posada das calaveras (caveiras). Ou Frida Hartz, que capturou a inconsolabilidade da morte na foto da viúva mexicana do campesino, assassinado porque insistia em reclamar os seus direitos. Entretanto, em Other Americas, Salgado não parece reconhecer que a morte esteja em contexto: quando tantos morrem por razões econômicas, faz parte da vida. Mas se a morte não deve ser celebrada, pode-se ao menos rir na sua cara, como fez Nacho Lopez na sua imagem de um homem com um sorriso meramente visível, cuja altura está sendo medida na frente de uma loja de caixões. Outra opção é o comentário cômico que, com justiça, tornou Manuel Álvarez Bravo famoso: em Señal, Teotihuacán, umas garotas mostram-se, como se transfixas, olhando um anúncio enorme pintado na parede de uma funerária. Entre as palavras CAJAS (CAIXÕES) e MORTUÁRIAS, aparece uma mão negra cujo dedo aponta para onde se possa adquirir caixões, em direção ao grande além. Um relógio no pulso nessa mão serve como um lembrete macabro do tempo que ainda existe, exceto pelo fato que seja pequeníssimo, como se um homem estivesse usando um relógio feminino. Uma jovem aparenta recuperar o fôlego, frente à mortalidade explicitada, levando a mão à boca, enquanto outras duas – fantasmagóricas em seus movimentos - parecem já se encaminhar à terra prometida.

A insistência evidenciada em Other Americas ao documentar a futilidade do consolo na América Latina é manifesta numa imagem do dia de finados (Todos os Santos). Tomada num cemitério mexicano, os tons opacos e esfumaçados criam uma imagem insondável em que um cão domina o primeiro plano, enquanto as pessoas estão perdidas por detrás, no fog. Se a presença de um cão num cemitério pode ser chocante às sensibilidades norte-americanas, não há nada de misterioso nesse Todos os Santos, momento em que as famílias se encontram para limpar as tumbas e se reunir com os desaparecidos queridos. Assim o Finados em essência é oposto ao que Salgado representa nessa imagem, o que pode ser claramente entendido ao compará-la às de Álvarez Bravo, Nacho López ou dos Hermanos Mayo, das famílias que se mostram reunidas nos cemitérios nessas datas. O espírito vivo de celebração,
o seu contente desafio à mortalidade, é bem representado pelas fotos de Álvarez Bravo, tais como a da jovem sorridente que tem às mãos uma caveira de açúcar cristal com a palavra AMOR escrita à testa.

Em Other Americas a paixão pela morte e o desespero pode ser vista nas crianças brasileiras que brincam no chão com ossinhos de animais. Aqui, enquanto alude à morte, Salgado também enfatiza a pobreza evidente na ausência de brinquedos verdadeiros. O tom psicológico da foto é dado na expressão solene da face das crianças e na sua prostração ao solo. Ao capturar esta cena de cima, Salgado envia a sua mensagem claramente: que resposta a mais, outra que a resignação, seria possível face à tamanha miséria? A foto de Nacho López de crianças pobres brincando com um rato oferece-nos uma resposta. Vemos crianças presas na armadilha de uma das paupérrimas vizinhanças da Cidade do México,também sem brinquedos, reduzidas a encontrá-los onde possível, no caso um rato, o objeto de suas brincadeiras. López denuncia essa situação, mas se recusa a manter¬se fixo em quão deprimente ela o seja. A imagem expõe as precárias condições sanitárias da favela e demonstra a pobreza das crianças, mas clarifica também como a criatividade pode florescer em meio à necessidade. Além disso, Lopez realça a iniciativa dos meninos por meio de duas estratégias formais: de um lado, o ângulo baixo escolhido concede poder às crianças no quadro; de outro, as crianças interagem consigo, olhando para a câmera.
A morte de animais em Other Americas é possuída de uma inexplicável aflição. Um jovenzinho mexicano coloca-se próximo a um bode morto, escalpelado e pendurado a uma árvore. Uma corda sustenta-lhe a cabeça – permitindo-lhe devolver uma certa mirada à câmera – uma pata está presa para cima, como se estivesse acenando misteriosamente. Próximo ao espetáculo mórbido um jovem firma a vista fixamente à câmera que olha de cima para baixo da cena. Compare-se esta imagem com a do vendedor de galinhas mortas de Nacho Lopez, que carrega uma verdadeira floresta delas à mão, com a face quase coberta por seus pescoços desplumados. Apesar de se tratar de uma imagem assustadora, não é grotesca nem enigmática: o pollero (vendedor de galinhas) simplesmente está transportando a sua mercadoria para vendê-la. Enfim, a imagem demonstra o toque de humor irônico, transmitido pela documentação de Lopez das justaposições inerentes ao surreal que tão freqüentemente se apresentam no México.

Em Other Americas até a natureza da América Latina aparece angustiada. O cacto, por exemplo, é uma planta que tem servido com freqüência como veículo para as reflexões dos fotógrafos sobre o México e a mexicanidade. Nas imagens de Salgado, um agave isola as crianças mexicanas, que são retratadas dentro de suas pontas afiadas, parecendo ameaçá-las e aprisioná-las, um símbolo à dor cotidiana da vida nestas partes do mundo. Essa não é a conotação que nos oferece Edward Weston àquela planta, em imagens que a retratam em sua forma majestática e exuberante.Nem se encontra entre os significados que Álvarez Bravo determinou para essa forma vegetal nas variadas explorações desse símbolo nacional, talvez com bom humor, quando modernizou o agave, fazendo aparecer o estame central que se ergue ao centro da planta quando em floração, convertido numa antena de televisão. A forma pela qual Salgado apresenta o cacto é destituída da complexidade crítica da foto de Héctor García, “Corona de Espinas”. Nessa imagem de García, um trabalhador numa plantação de henequén (sisal) luta sob a carga pesada que transporta com o auxílio de uma tira à testa, capturando o trabalhador braçal no momento em que uma planta viva, no pano de fundo, forma uma coroa. Com isto García cria uma poderosa metáfora, numa concatenação religiosa e política.
Será que Other Americas pode oferecer alguma fórmula para escapar do discurso pouco entusiasmado criado por suas imagens? Poderia a política ou a religião oferecer uma resposta à opressão ali fotografada? O livro negligencia a luta política e de classes. Apesar de o autor ter explicitamente declarado não ser religioso e não acreditar em deus, outros têm apontado em sua obra imagética um significado religioso. Por exemplo, William Shawcross e Frances Hodgson asseveraram que “Muitas das fotos de Salgado parecem posicionadas na longa tradição cristã da iconografia do sofrimento.” Mesmo assim trata-se de um sofrimento do qual não há salvação porque a religião nada mais é que outra carga para os mexicanos que carregam vigas às costas como se fossem cruzes. Em Other Americas, a religião ou não oferece soluções – algo evidente nos ombros curvos e na expressão interrogativa de um campesino mexicano de frente a uma igreja coberta de névoa – ou apresenta simplesmente outra oportunidade de retratar o enigmático, como na imagem dos equatorianos que cobrem a face com uma bandeira religiosa. As imagens de Other Americas não contêm a aparente fé religiosa dos devotos pobres de Nacho López, ajoelhados em frente à Virgem de Guadalupe, nem a mistura de religiosidade e modernidade vista no trabalho de Guillermo Castrejón, uma freirinha sustentando um aparelho de televisão à cabeça, onde o Papa aparece durante a visita ao México. Obviamente, nada de Other Americas liga a religião aos seus projetos progressistas, tais como a Teologia da Liberação ou a revolução, como no caso de El Salvador.

Dado que Salgado apareça tão genuinamente preocupado com a condição dos despossuídos de poder, talvez mais ainda em sua terra natal, pode-se perguntar: Como é que Other Americas escorrega no erro? Como é que essas boas intenções levam-nos tão longe no espaço? E, mais importante, o que se pode aprender com esses equívocos? A preocupação com as convenções do grotesco e do pitoresco na representação da América Latina com certeza deve ter-lhe exercido algum efeito e a possível influência das imagens de Robert Frank não pode ser descartada. Entretanto, o problema pode estar na sua aderência à tradição das artes plásticas em mostrar as imagens com explicações mínimas, pois se limita em dizer em que país e que ano a foto foi tomada. Enquanto isso é bom para que a imagem se situe por si mesma e seja julgada de acordo com as suas qualidades formais, flui ao contrário do fato que seja naturalmente, talvez essencialmente, particular; isto é, a foto é necessariamente sempre tomada de um indivíduo principal (ou mais) num contexto especial durante uma fração de segundo altamente selecionada.

Em Other Americas a forma de narrativa que o autor escolheu está mais ajustada à construção dos símbolos eternos universais que na elucidação de particularidades daquilo que aparece nas fotografias. Publicadas de um modo que deixa um sentido de vácuo histórico, as imagens perdem suas referências específicas. Pode-se dizer que sejam mais símbolos do que documentos ou, para levar a questão mais adiante, metáforas. Uma das maneiras de descrever o fotojornalismo é em termos do contínuo entre os pólos de informação e expressão. O fotojornalismo tradicional concerne mais à informação, as suas imagens são documentos predominantemente limitados a apresentar situações particulares. Como tal, carecem freqüentemente de expressividade para transformar situações particulares em declarações que transcendam ao caso individual. Ao contrário, o fotojornalismo artístico, como o de Salgado, tende mais ao pólo expressivo e as suas imagens são símbolos que falham com freqüência em apresentar adequadamente a particularidade de cada situação, porque carecem de informação com a qual pode ser construída. Apesar de conscientes dos riscos de tais generalizações por atacado, podemos dizer que em geral as imagens dos fotojornalistas artísticos nos dizem menos acerca do que estão fotografando do que deles mesmos.

Talvez o melhor fotojornalismo funda informação e expressão, documento e símbolo, de tal forma que criem a metáfora: uma imagem que retém a particularidade de seu referente, mas, ao mesmo tempo, garanta uma verdade mais ampla que transcende o contexto imediato. Exemplo revelador é oferecido pela reportagem de Salgado sobre os “garimpeiros”, os mineradores de Serra Pelada, Brasil, que começou imediatamente depois da publicação de Other Americas e que constitui um capítulo de Workers (Trabalhadores). As suas fotos penetrantes capturaram a insanidade desenfreada da procura ansiosa da riqueza imediata em condições de vida e trabalho desumanas: as faces vazadas pelo delírio e a demência, as batalhas entre os mineradores e os soldados enviados para lhes policiar e os cenários em que homens-formiga se alinham em fila, uns com outros, sob o peso bruto de suas cargas. Essa reportagem bem poderia ser uma metonímia às infinitas aberrações de um mundo com tão poucas esperanças. E representa um avanço significativo ao Other Americas, pois aqui não há mistério na excentricidade; ao contrário, ela diretamente se deriva das condições manifestas horrivelmente em que esses pobres infelizes trabalhavam. Não é o caso de Other Americas, cujas imagens contêm tão pouca informação visual porque foram predominantemente tomadas de modo a eliminar os contextos sociais, políticos e econômicos.

As imagens dos garimpeiros são capazes de gerar metáforas com pouco texto porque as situações estão precisamente delimitadas requerendo pouquíssima intervenção verbal. Entretanto, a capacidade de construir uma narrativa de alguma particularidade usualmente é uma emanação das descrições escritas que as acompanham. A falta de texto em Other Americas significa que a conotação das imagens deriva de um relacionamento criado entre elas e o gritante sentido de miséria, desespero e enigma, resultado do fato de que não nos é oferecido nenhum outro modo de interpretação que faça sentido nessa acumulação de significados. A ausência de um contexto histórico articulado deixa o leitor boiando num vácuo anacrônico e algo eterno. Não há movimento na narrativa porque tudo é dado e nenhuma modificação permitida. Isso representa o tipo de coisa que alguns críticos do mundo desenvolvido esperam ver, vindo da América Latina, e para eles o “mistério” e o “estranho” do livro se relaciona a “um realismo mágico na tradição pós¬moderna onde pobre e pobreza são vistos misticamente”.
Essa é uma leitura equivocadamente oferecida das suas intenções. Com certeza permanece na superfície e à vista somente o que se espera ver, em oposição ao seu, sempre repetido, argumento sobre por que trabalha em projetos de longa duração. Em várias ocasiões, Salgado tem articulado a necessidade de penetrar naquilo que esteja fotografando:
Quando se trabalha depressa o que se põe nas fotos é o que você traz consigo – as suas próprias idéias e conceitos. Quando se gasta mais tempo num projeto você aprende a entender os seus sujeitos. Chega um momento em que não é você quem está tirando as fotos. Algo especial acontece entre o fotógrafo e as pessoas que está fotografando. E conclui que elas é que estão-lhe dando as fotos.

A sua maneira de fazer fotojornalismo colide talvez com a mais sacrossanta teoria de fotografia documentária mas, ao mesmo tempo, pode oferecer uma saída à ameaça que a alteração digital parece oferecer à credibilidade do meio fotográfico. Salgado tem discordado do tema consistentemente, quanto ao conceito do momento decisivo, idéia formulada por Henri Cartier-Bresson, que articulou-a assim: “Desejei intensamente agarrar, no confinamento de uma simples foto, toda a essência da situação que estivesse no processo de se desdobrar ante os meus olhos.”

Com toda imparcialidade a Cartier-Bresson, deve-se notar que também reconheceu que o gênero da estória-fotografia pode requerer horas ou dias e que ao se fotografar pessoas o fotógrafo deve sempre tentar substanciar a primeira impressão “vivendo” com elas. Porém, a noção de Cartier-Bresson do momento decisivo tornou-se uma espécie de metáfora-praga seguindo sempre de perto os fotojornalistas, para quem destilar uma simples imagem da essência de um evento depende da precisão da visão para descobri-lo e da capacidade técnica em capturar a fusão do social e do formalmente significante. É Salgado quem afirma: “Tenho tido muitas dificuldades com Cartier-Bresson pois discordo dessa idéia e muito da fotografia documentária.” E declara que o fotojornalismo “requer algo diferente, a densidade da experiência da integração do fotógrafo ao contexto do que esteja documentando”.” Assim, em contraste ao “Momento Decisivo” propõe o que chama de teoria do “Fenômeno Fotográfico”:

Você fotografa aqui, fotografa ali, fala com a gente, compreende-a e ela lhe compreende. Então, provavelmente, você chega ao mesmo ponto que Cartier-Bresson, por dentro da parábola. E isto para mim é a integração do fotógrafo ao sujeito de sua fotografia... Uma imagem é a sua integração com a pessoa fotografada no momento em que trabalham tão incrivelmente juntos que a sua foto nada mais é que a relação que você tem com o seu sujeito.

A preocupação com o “momento decisivo” se encontra no centro do problema das imagens alteradas digitalmente. Pedro Meyer, o fotógrafo mexicano pioneiro nesse domínio, clarifica que a sua teoria e prática nesse meio estão baseadas, em certa extensão, em capturar a justaposição de elementos significantemente em discordância dentro de um quadro; por exemplo, os migrantes mexicanos em suas tarefas de trabalho se debruçam ante um campo sob um cartaz-anúncio que oferece “SERVIÇOS LUXUOSOS DE SEU MOTEL”, enquanto um gladiador romano abre a porta de um táxi privado. Com justeza Meyer afirmou: “Eu não tive a intenção de esperar uma semana, dez dias ou o tempo necessário para que alguma coisa acontecesse e que, assim, eu obtivesse o ‘momento decisivo’ esperado por tantos fotógrafos... O momento decisivo específico não seria nunca encontrado se não tivesse sido criado.” Se o momento decisivo é encontrado pelo fotógrafo tradicional num golpe de tempo, posicionamento e de virtuosidade técnica ou se é “criado” pelo artista digital, a estética obtida se baseia na obtenção de um momento evanescente de significância visual. Ao contrário, a idéia de Salgado de que as mediações primárias da estética do documentário são a relação entre o que se pode estabelecer com os sujeitos e o conhecimento adquirido sobre a sua situação, é um fato que oferece uma aproximação operacional fundamentalmente diferenciada.
Essa poderia ser a posição com a qual esteve trabalhando na América Latina, em seu livro de 1997, Terra. Às vezes uma auto-crítica das falhas de Other Americas, usa em Terra extensos subtítulos publicados no fim do livro para contextualizar a imagética dos tristes tropiques ligando-a a forças sócio-econômicas. Igual importância está em que Salgado desenvolveu uma narrativa que documenta não só a opressão, mas também sua resposta dialética: a luta coletiva. A estória de Terra se desdobra, em essência, em duas partes: a primeira metade do livro se compõe de fotos previamente publicadas em Other Americas, mostrando o povo, sua terra, trabalho e privações. As imagens enfatizam como “a dignidade e a pobreza são companheiras inseparáveis da população rural” e aqui se vê pouco do desespero e da miséria misteriosa em que estão enclausurados em Other Americas. As fotos de mãos retorcidas, linhas faciais aprofundadas, e de pessoas trabalhando duro no campo oferecem um pano de fundo para a segunda parte de Terra: as fotos de 1996 da migração urbana e da invasão de propriedades rurais. Esta estrutura oferece um mais amplo sentido histórico aos problemas e prospectos da América Latina.

Ao fotografar o movimento em direção à cidade grande e sua concomitante desumanização, o mesmo Salgado migra para uma área previamente ignorada. Note¬se que o faz com muito sucesso, naquilo que seu trabalho se compara favoravelmente ao melhor de tantos outros ótimos profissionais latino-americanos para quem a crise urbana tem sido foco. A fuga para as cidades tem sido a reação típica à monopolização da terra pelos interesses do latifúndio e das plantações de monocultivo que controlam a vida rural brasileira. As suas imagens documentam a realidade difícil e dura das desumanas condições de vida que esperam os migrantes: crianças sem-teto, vivendo em caixas de papelão, apertadas, comendo a sua ração diária de pão; recém-chegados, dormindo próximo às estradas ou em super¬abarrotados e amedrontadores albergues noturnos; sob as redes elétricas mal¬ajambradas em postes improvisados, crianças andam de bicicleta à noitinha em estradas de terra, junto a pilhas de lixo; numa imagem reminiscente às de Jacob Riis, pessoas vivem debaixo de estradas densamente trafegadas, entre paredes de compensado e pilares de suporte; as prisões assemelhadas aos pontos de ônibus são quase indistinguíveis.

Esses testemunhos pungentes à derrocada da migração, tanto dos emigrantes quanto da sociedade, são sublinhados numa seção final, “Migrações às cidades”: um conglomerado de bebês abandonados sob o pano de fundo do perfil da cidade, por detrás, servem como espelhos refletores mútuos e como metáforas do futuro. Só então Salgado deixa patente o seu compromisso com as gerações futuras no retrato de crianças, que oferece uma ponte entre o capítulo final de Terra e o Movimento dos Sem-terra, o MST. Esses retratos são imagens maravilhosas de lindas crianças cujas faces sujas e roupas rasgadas deixam uma impressão duradoura. Neste contexto é bom lembrar que ele tem sido criticado por esteticizar a miséria; contudo, Julian Stallabras observou:

O que significa fazer do sofrimento dessas pessoas uma forma de arte? Em resposta a essa questão, a primeira coisa a se perguntar é, que alternativas seapresentam? É dificilmente concebível que se possa descrever de modo distante e anestesiado muito da fotografia contemporânea, adequada a mostrar a fadiga mental suburbana... Em seu forte plano formal, as fotos de Salgado revivem as fotos do modernismo com uma ênfase na geometria e no contraste visual. A beleza é posta a serviço do humanismo envelhecido...” .

Ensinar às pessoas as novas maneiras de ver talvez seja menos importante neste momento do que a questão do que virá a ser o futuro das crianças do Brasil; eles introduzem esta interrogação articuladamente aos seus olhos inquisitivos. Assim, a resposta real à crítica feita essencialmente por comentadores do mundo desenvolvido pode ser que eles não possam entender completamente as perspectivas que Salgado oferece na causa em questão. A última seção de Terra enfoca a luta pela terra. Aqui, os olhos tristes dos mais velhos de Other Americas – símbolos misteriosos da morte – foram substituídos por repressão, luta e criação de uma nova vida em escolas comunitárias e residências nos novos assentamentos. Imagens de corpos furados de balas e ensangüentados, caixões empilhados em caminhões e a dor das mães de camponeses mortos, estão ligadas diretamente à polícia militar paga pelos proprietários. Enquanto isso, os camponeses levantam as suas ferramentas e foices em triunfo, pelo que Salgado documenta da tomada de terras pelo MST, que tem aumentado a migração como resposta à falta de terras para cultivo familiar.

Entre essas imagens tomadas desde 1980 e que oferecem um fundo para a primeira parte de Terra, estão outras que foram originalmente publicadas em Other Americas. Esta estratégia abre a questão da contextualização, pois em Terra adquirem, com freqüência, significados diferenciados dos anteriores. Talvez o efeito mais imediato dessa contextualização seja o desaparecimento do enigma; agora entendemos porque essas pessoas parecem tão tristes: não possuem terra onde produzir comida, nem futuro, para si mesmos e suas crianças, outro que a miséria, a doença e a morte. A sua pobreza é tamanha que até a igreja fornece caixões temporários que são fornecidos somente para levar os mortos aos cemitérios, onde são enterrados sem eles, pois são usados de novo. Ao serem dadas informações sobre como subsistem ante essas deprivações, de repente as imagens se esclarecem onde antes era impenetrável: a fotografia do homem sobre a cova rasa de uma mulher morta, sem o caixão, cessa de ter a conotação grotesca e se torna uma crítica social articulada.

Salgado busca retrabalhar as imagens ao publicar diferentes versões de algumas das cenas de Other Americas. Sinaliza explicitamente a intenção dessa reescritura abrindo Terra com a foto de crianças deitadas no chão ao lado de seus brinquedos de ossos de animais e, mais adiante, incluindo outra imagem delas que em atitudes dinâmicas atestam a sua atividade. A cena em que as pessoas se postam ante as covas separadas, que parece significar um símbolo macabro da sua alienação, é também reescrita em Terra, ali substituída por duas outras fotos: numa tomada de pessoas se deslocando em direção ao cemitério num funeral e noutra, uma imagem dessas pessoas momentos depois, enterrando uma criança.

Em geral a análise fotográfica tem se concentrado nas estruturas imanentes das imagens, em relações intra-quadros. Entretanto, as fotografias são textos que possuem uma natureza ambígua e polissêmica. A sua capacidade narrativa é frágil e
o seu significado é com freqüência determinado pelo contexto imediato criado na publicação: na síntese de texto, em títulos e em foto-ensaios extensos como os de Other Americas e Terra, no significado acumulado dessas próprias imagens. Em Other Americas a ausência de texto escrito e os seus títulos mínimos criaram uma situação em que o significado imagético foi determinado inteiramente por efeito cumulativo. Dado que muito das imagens de pessoas sombrias, até mesmo angustiadas de dor em suas expressões, sempre estejam na presença de alguma forma da morte e também divididas entre si por alguma estrutura formal, o mistério, a dor e a separação, algumas sensações por elas evocadas. Já em Terra, Salgado ofereceu um contexto histórico para o entendimento da fonte dessa doença e criou uma narrativa que se move da opressão passada ao presente de luta.

Other Americas foi o primeiro passo na tentativa de se reconectar à sua terra nativa, depois do exílio. Para isso, afirmou: “Para ser possível viver na Europa eu tinha que voltar à América Latina”.Como muitos latino-americanos, deixava a sua terra natal de modo a descobri-la. Assim, começou esse reencontro, acomodando uma poderosa imagética ao paradigma grotesco e pitoresco, as únicas formas acreditadas com as quais podia falar de sua cultura no mundo desenvolvido. Se este livro encorajou as expectativas e desejos daquela audiência, Terra representa um esforço para ajudar os brasileiros a obter aquilo de que carecem.
Suas iniciativas recentes de fotografar a América Latina levaram-no às problemáticas mais recentes da emigração e transculturação. Migrations utiliza a mesma estrutura empregada com tanto sucesso em Terra: as imagens são apresentadas num formato artístico, permitindo que se posicionem sós em todo o livro, enquanto textos explicativos são oferecidos num livreto anexo, inserido no final. O fotógrafo devotou mais de um quarto do livro à América Latina. Abrindo-o com um índio brasileiro, tenta usar o último e mais frágil dos vestígios das civilizações pré-colombianas para construir uma nostálgica alusão ao que deva ter sido antes da chegada dos europeus. Aqui ele cria uma disjunção entre imagens idílicas de famílias indígenas reunidas em volta de piscinas naturais na floresta e textos que descrevem a débacle do paraíso: as culturas nativas têm sido empurradas à beira da extinção pelas doenças e invasões, a devastação da floresta as tem levado à erosão, da qual não há retorno. Dessarte, o autor nos presenteia com belíssimas imagens de jovens índias, descrevendo como são abusadas sexualmente pelos mineradores que penetram em seu território; mostra-nos umas criancinhas, debruçadas em suas redes, e diz-nos que agora são feitas de fibras sintéticas, um dos muitos produtos em que os índios dependem dos novos invasores; retrata um chefe guerreiro indígena, mas avisa-nos que os índios estão se pauperizando em sua própria terra.
As seções sobre o abandono das terras do Equador mostram as falhas dos projetos de modernização nas culturas rurais do presente.62 Algumas dessas imagens são algo pitorescas: pastoreadas por uma indiazinha em roupas típicas, ovelhas pastam num monte, enquanto um extenso vale é visto abaixo. Outras delas podem mesmo ter aparecido em Other Americas: uma criancinha com um olhar severo e roupas esfaceladas trabalha num campo; uma mulher e algumas crianças com expressões temerosas juntam-se fora de casa. Entretanto, o livreto explicativo contextualiza essas imagens, informando-nos que, devido às terras mais férteis no coração do vale terem sido monopolizadas pelos ricos rancheiros de gado, os homens foram forçados a migrar para outras cidades, deixando o trabalho rural para as crianças e mulheres. Segundo Salgado, a transformação da vida doméstica entre os camponeses é um fenômeno recente: “Há vinte anos as responsabilidades familiares eram distribuídas diferentemente: as mulheres cuidavam da casa e os homens trabalhavam no campo.”
Alguns escolheram resistir e emigrar sempre com uma resposta de repressão por parte dos proprietários e dos governos. Salgado detalhou essa dialética nas seções sobre a rebelião neo-zapatista em Chiapas e o MST no Brasil. Ali documenta as pequeníssimas comunidades organizadas pelos índios de Chiapas, em áreas liberadas dos paramilitares empregados pelos ricos e treinados pelo exército mexicano. Duas imagens tomadas nesses campos retratam o surrealismo pós¬moderno, não raro associado ao México: largas pranchas de plástico, cartazes de anúncios na cidade do México, foram obtidas pelos que os apóiam e lá enviados para ajudar a montar abrigos em áreas montanhosas de clima frio e úmido. Essas formas de incitação consumista urbana se tornaram paredes dos casebres que os abrigam, em que pinturas maiores que o natural de belas louras se posicionam justapostas ao moreno dos índios com que coabitam. Tanto em Chiapas como no Brasil, Salgado poderosamente representou a vida diária das pessoas que se recusaram a acompanhar as demandas das regras neo-liberais, e as imagens de corpos ensangüentados e de caixões fechados demonstram o preço que estão dispostos a pagar na batalha para lavrar e possuir a terra.
A vasta maioria das pessoas que deixam as terras é empurrada às megacidades pela pobreza rural causada pela monopolização da terra por latifúndios, enormes áreas de ricos e poderosos e com freqüência de proprietários ausentes, apesar da existência de desastres naturais, tais como o furacão Mitch, que podem contribuir intensamente nesta migração. Salgado mostra as favelas que cresceram ao redor da cidade do México e de São Paulo, documentando a desintegração da família que leva ao comportamento auto-destrutivo, tal como o hábito de cheirar cola e fumar crack, pelos jovens que vivem pelas ruas das cidades. Cenas de lixeiras onde os mais destituídos escolhem os seus refugos lado-a-lado com os urubus, e imagens de criancinhas caminhando debaixo de linhas elétricas engatilhadas perigosamente, o que clarifica como é enganosa a promessa da urbanidade ao pobre obrigado a migrar para as cidades.
A transculturação dos migrantes que se mudam para as cidades é levada ainda a outro nível pelo processo de transnacionalização da imigração da América Latina aos Estados Unidos. Salgado reconstrói a “Passagem pelo México” seguida por muitos que deixam Honduras, Nicarágua, Guatemala e El Salvador, à procura de uma nova vida. Em poucas imagens oferece uma ilustração do tema, enfocando principalmente nas experiências daqueles que viajam de trem. As fotos da fronteira México-Estados Unidos se resumem à área de Tijuana e San Ysidro e as imagens são dominadas pela “Versão norte-americana da grande muralha da China”, uma barreira gigantesca de aço erigida neste ponto para frear a passagem ilegal: homens olham através dela em direção à terra prometida, indivíduos dormem à sua sombra esperando pela escuridão, migrantes ilegais, aprisionados pela Patrulha de fronteiras, correm em sua direção para cruzar de volta ao México e fugir da humilhante deportação.65 Há também fotos de migrantes que foram presos, a mais poderosa delas em que mostra dois deles juntos e agrilhoados, com o oficial norte-americano por detrás.

A sua visão da fronteira é negra e está em contexto com o demais de Migrations, se bem que pareça super-enfatizada, frente às histórias desgraçadas do genocídio de Ruanda, dos Curdos imprensados entre o Iraque e a Turquia, ou a situação desesperadora dos Palestinos, ainda sem pátria, depois de cinqüenta anos. Certamente muitos mexicanos que não desejem sair de seu país são forçados a fazê¬lo, à falta de oportunidades econômicas. Mesmo assim, a migração é uma opção que pode ser escolhida por aqueles que não desejem se ver presos na armadilha da existência tradicional, que desejem mudar as suas vidas. Os migrantes são com freqüência o que há de mais dinâmico e decisivo numa população, como se nota no otimismo demonstrado dos braceros (trabalhadores braçais) mexicanos em 1940, captado pelos Hermanos Mayo, que deve ao menos ser considerado como parte da história.66 Muito das imagens da fronteira mexicano-americana publicadas em Migrations apareceu primeiro no foto-ensaio de Salgado em Rolling Stone, entretanto, a última foto desse artigo, de um homem com seu filho, transborda em otimismo e força, apesar das difíceis condições de vida, e não foi incluída no livro.

Salgado é uma nova raça de fotojornalistas, título que assume com orgulho. Rejeita a noção de que cria arte, asseverando que o seu interesse primário seja a reportagem do momento histórico em que esteja vivendo, mostrando que a base material de seu trabalho está antes de tudo na imprensa. Ele financiou os seus projetos de longa duração publicando diversas previews (prévias) tais como artigos em revistas como The New York Times Magazine, Rolling Stone, El País Semanal, Actuel, Newsweek, The Sunday Times Magazine e Geo. Porém, nenhum outro fotojornalista teve até o momento um tal comando de exibições e espaço que ele tem tido, ou tem-se engajado em projetos e assuntos tão amplos e auto-envolventes. A enorme temática individual de suas exposições – Workers e Migrations – resta sem paralelo na História da Fotografia, para não dizer do Fotojornalismo. Os longos e pesados livros em que essas imagens aparecem são igualados somente aos trabalhos dedicados à carreira inteira de clássicos da fotografia documental e do fotojornalismo, como Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, David Seymour, Dorothea Lange, Walker Evans ou Gene Smith. Que um fotógrafo Latino Americano tenha alcançado esse reconhecimento é algo extraordinário. Como foi capaz desse feito?

A trajetória de Sebastião Salgado como fotógrafo documental pode ser caracterizada como a de alguém que primeiro seguiu as formas estabelecidas de técnica e assunto, enquanto ia explorando as possibilidades da forja de sua visão própria; isso talvez possa ser apreciado mais facilmente ao se considerar as transformações das formas com que tem fotografado a sua terra natal. Começou reproduzindo o paradigma pitoresco na representação daquilo que poderia ser considerado como as noções profundas e autênticas da cultura rural latino¬americana, replicando já bem trabalhadas formas do exótico, diferenciadas daquilo que Europa e Estados Unidos esperavam, e estavam acostumados a ver. Entretanto, veio a reconhecer que para poder dizer afinal algo realmente de novo sobre a sua terra teria que avançar além da superfície das imagens. Isso o levou ao trabalho próximo ao Movimento dos Sem Terra, integrando-se ao assunto para que esse relacionamento pudesse se tornar uma expressão estética da luta em que estavam engajados. Mais tarde aplicou o mesmo método a problemas contemporâneos da migração e da transculturação. A validade da fotografia documental e do foto¬jornalismo deposita-se na inserção do fotógrafo nas realidades que deseja retratar, na teoria do fenômeno fotográfico, na prática do compromisso com os oprimidos e na capacidade de estender os limites do aceitável, temas aos quais oferece um modelo para os fotojornalistas do futuro.