Coitada da demografia, não acerta nunca...
Décadas atrás, quando a população crescia rápido demais, foram
atribuídas à demografia uma série de problemas sociais e ambientais -
mas pouca gente acreditou. Agora, que o crescimento populacional
desacelerou, muitos dos efeitos econômicos e sociais dessa
desaceleração, preditos há décadas, aconteceram - mas novamente, ninguém
fala que é por causa da demografia. Pode ser por causa de qualquer
coisa, menos dela. A demografia é tabu.
A explosão demográfica e o alerta do Clube de Roma
Em
1970 e 1972, o Clube de Roma alertou que o crescimento populacional nas
taxas da época traria desastrosos efeitos sociais e inclusive
ambientais. |
Vamos rever rapidamente alguns dos acontecimentos das últimas décadas.
No pós-guerra, especialmente nas décadas de 1960 e 1970, a população
mundial crescia de forma exponencial, num ritmo extremamente rápido, de
mais de 2% ao ano. Como demonstrado
recentemente aqui em ((o))eco por meu colega e amigo Carlos Gabaglia Penna,
essas taxas de crescimento eram centenas de vezes mais altas que as
experimentadas pela humanidade durante a maior parte de sua história.
Naquelas décadas, a miséria, a fome e as desigualdades sociais
aumentaram brutalmente em grande parte do mundo. Isso aconteceu de forma
especialmente trágica nos países onde o crescimento populacional foi
mais rápido, os quais correspondiam quase com exatidão ao que chamávamos
de “terceiro mundo”. A China, por exemplo, tinha uma população em
explosivo crescimento, e um padrão de vida baixíssimo, quase miserável. A
renda per capita da China na década de sessenta estava abaixo das
Filipinas, do Vietnã, do Egito, do Paraguai e do Sudão, e próxima às do
Haiti, Paquistão e Etiópia. Naquela época ninguém sequer pensaria em
falar da China como uma potência mundial - era, pelo contrário, citada
como exemplo de país subdesenvolvido.
Naquela época, diversas vozes começaram a alertar que o crescimento
populacional explosivo era a maior causa daqueles problemas - embora,
obviamente, não a única. O ecólogo Paul Ehrlich falou da “ bomba
populacional” em 1968. O geógrafo francês Yves Lacoste definiu
subdesenvolvimento como “uma situação caracterizada por uma distorção
durável (ou uma tendência à distorção) entre um crescimento demográfico
relativamente intenso e um aumento relativamente fraco dos recursos de
que dispõe a população”. Em 1970 e 1972, o Clube de Roma - um grupo de
cientistas e intelectuais reunidos na capital italiana - alertou que o
crescimento populacional nas taxas da época traria desastrosos efeitos
sociais e inclusive ambientais, por causa da escalada da poluição. A
desaceleração do crescimento populacional seria uma condição
imprescindível para que os países de terceiro mundo pudessem sair do
subdesenvolvimento e resolver seus imensos problemas.
O nascimento do tabu
Os alertas tiveram muito impacto na época, mas foram rapidamente
esquecidos. A questão demográfica voltou a ser quase ignorada, varrida
para baixo do tapete. Boa parte disso se deveu à demonização da idéia
por parte de muito das ciências sociais, que associaram o alerta sobre a
explosão demográfica às idéias de Thomas Malthus, do final do século
XVIII. Se alguém alguma vez chamar você de “neomalthusiano”, é hora de
partir para a briga - esse é um dos piores xingamentos disponíveis no
arsenal dos cientistas sociais.
É bem verdade que a obra de Malthus, embora fosse útil para apontar o
problema, possuía argumentos matemáticos simplistas. No entanto, seria
ingênuo pensar que as idéias dele foram tão enfaticamente rejeitadas por
causa de seu conteúdo científico. Na verdade, foram rejeitadas por
causa do incômodo com as possíveis soluções. Ninguém conseguia conceber
uma solução adequada para estabilizar o crescimento populacional
rapidamente numa sociedade democrática, sem ferir alguns de nossos
valores mais caros a respeito de direitos humanos. Diante do violento
impasse - percepção do problema populacional, mas repulsão com os meios
disponíveis para resolvê-los - muita gente preferiu adotar a solução
mais simples: ignorar o problema, fingir que ele não existia. Nascia o
tabu.
O crescimento populacional se desacelerou quase sozinho
Na
grande maioria dos casos, as sociedades reduziram sozinhas seu
crescimento populacional, como consequência de mudanças nelas mesmas. |
Então, aos poucos, uma coisa inesperada foi acontecendo. O crescimento
populacional foi se desacelerando, devagar, paulatinamente. Hoje, a
população mundial cresce cerca de 1,1% ao ano, ou seja, metade das taxas
do início da década de 1960. Na maioria dos casos, o crescimento se
desacelerou “sozinho”, quer dizer, sem que houvesse qualquer esforço
significativo dos governos nacionais para isso. Uma série de mudanças
nas sociedades humanas, incluindo urbanização, maior participação
feminina no mercado de trabalho, a pílula e a revolução sexual, foram
reduzindo lentamente as taxas de crescimento. Houve também campanhas de
algumas organizações internacionais e ONGs para reduzir a natalidade em
vários países, mas tais ações tiveram uma contribuição relativamente
pequena para a desaceleração. Na grande maioria dos casos, as sociedades
reduziram sozinhas seu crescimento populacional, como consequência de
mudanças nelas mesmas.
A exceção, quanto a como se deu o processo, foi a China. Lá, o
crescimento populacional foi desacelerado graças a uma rigorosa política
governamental de filho único, implantada de forma autoritária, por um
governo autoritário. Não concordo com os métodos empregados pela China,
nem acho que eles devam servir de modelo para qualquer país. Mas
esqueçamos por um momento como a China alcançou a desaceleração, e
olhemos por um momento para o que aconteceu. O crescimento desacelerou
muito mais rápido na China que na maior parte dos outros países. Em
algumas décadas a população chinesa deixou de crescer centenas de
milhões de pessoas - alguns Brasis - que teriam sido acrescentados à sua
população se as taxas de 1960 tivessem sido mantidas. De repente a
China - surpresa, surpresa - se torna uma das maiores potências
mundiais!
Surpresa chongas de pitibiriba. O Clube de Roma tinha cantado a pedra quarenta anos atrás!
O bônus demográfico nas versões chinesa e brasileira
O que está acontecendo, em grande parte, é que a China está passando por
uma fase conhecida como bônus demográfico. Esta fase é típica de países
que desaceleraram seu crescimento populacional recentemente. A
população já não tem uma proporção de jovens tão grande quanto tinha
décadas atrás. Por outro lado, como a desaceleração ainda é
relativamente recente, a proporção de idosos também não é tão alta. Com
relativamente poucas crianças e poucos idosos, a sociedade pela primeira
vez em muito tempo consegue lidar melhor com as demandas da educação,
saúde, e por aí vai. Além disso, maior parte da população está em plena
idade produtiva. Numa população assim, é difícil que a renda per capita
não suba.
A população chinesa foi quase estabilizada, como se dizia décadas atrás
que era o passo crucial para a China conseguir se desenvolver. Pouco
tempo depois, embora ainda esteja longe de ser um país rico, verifica-se
que ocorreram imensos avanços econômicos e sociais, e a China torna-se
potência mundial. Coincidência? Pode ter certeza que nem um pouquinho.
Mas mesmo agora, ninguém fala da demografia! Fala-se de economia,
circunstâncias de mercado, esquecendo-se do bônus demográfico, que
certamente não é a única causa, mas é pelo menos uma das causas
principais do “milagre chinês”. Pobre demografia! Nem quando ela faz
coisas boas alguém lembra dela.
É
óbvio que o Brasil, assim como os demais emergentes, está passando pelo
bônus demográfico agora, e grande parte do nosso bom momento econômico é
devido a isso. |
E o Brasil? O Brasil, como vários dos chamados “emergentes”, entre eles
Rússia, Índia, Chile e Coréia do Sul, também reduziu drasticamente as
suas taxas de crescimento demográfico. Em comparação com a China, nesses
países o processo foi mais recente e mais “natural” - isto é, não
autoritário, mostrando que a estabilização é possivel sem autoritarismo.
De repente - surpresa, surpresa - esses países chegam a uma fase de
relativa prosperidade econômica, e mostram avanços em seus problemas
sociais. É óbvio que o Brasil, assim como os demais emergentes, está
passando pelo bônus demográfico agora, e grande parte do nosso bom
momento econômico é devido a isso. Mas se você duvida do papel da
demografia, vá ver as taxas de crescimento populacional dos países que
claramente não saíram do subdesenvolvimento e continuam assolados por
problemas sociais cada vez mais insolúveis. Boa parte dos países da
África sub-saariana, o Haiti e o Afeganistão, entre outros, mantiveram
crescimentos populacionais altos e têm hoje as maiores taxas do mundo.
Coincidência? Não abuse da minha capacidade de acreditar em
coincidências.
No entanto, no Brasil também quase não se fala em bônus demográfico.
Nossos governantes se gabam de, com suas políticas sociais, ter tirado
milhões de famílias da pobreza. Porém, a pobreza é definida como renda
familar per capita abaixo de um certo valor. Como os filhos de modo
geral não geram renda, é óbvio que a mera diminuição do número médio de
filhos por família puxa a renda familiar per capita de milhões de
famílias para acima da linha da pobreza. Numa sociedade com a
fertilidade caindo rapidamente, isso dificilmente teria como não
ocorrer, mesmo na ausência de qualquer política social. Mas que político
já explicou isso? Eles preferem faturar às custas do bônus demográfico
como se fôsse um resultado de suas próprias atuações.
Então os problemas demográficos estão resolvidos?
Neste ponto poderíamos pensar que com a desaceleração do crescimento da
população mundial, e vários países em situação de bônus demográfico –
duas boas notícias sem dúvida - a questão populacional estaria perdendo
sua importância. Mas essse seria um imenso e trágico erro. A situação
atual não nos dá, de forma nenhuma, razão para complacência.
Hoje o problema do crescimento rápido da população mundial está sendo
substituído por outro, talvez até mais grave: o da superpopulação em si.
Gostemos ou não de perceber isso, já vivemos em um mundo superpovoado.
Somos sete bilhões, e a desaceleração em curso não é rápida o suficiente
para estabilizar a população global antes de chegarmos a nove bilhões.
Agora imagine esses bilhões de pessoas multiplicados por uma cultura
consumista e desperdiçadora, e o efeito disso é que o planeta está sendo
submetido a uma pressão tão gigantesca que não pode aguentar por muito
mais tempo. As consequências da dobradinha desastrosa de superpopulação e
superconsumo se tornam mais óbvias a cada dia, na perda de
biodiversidade, nas mudanças climáticas, e no colapso de serviços
ambientais dos quais precisamos para uma qualidade de vida mínima. Hoje é
a natureza que está dando o alarme, mas não se iluda que a prosperidade
econômica possa estar dissociada das questões ambientais mesmo a curto
prazo.
Além disso, cabe lembrar que há a conta a ser paga pelo bônus
demográfico: o envelhecimento da população nas próximas gerações. Uma
baixa fertilidade hoje significa uma população com uma alta proporção de
idosos amanhã, e isso é um gigantesco problema para as economias, por
exemplo para os sistemas de previdência social. Não é à toa que as
economias de países com populações envelhecidas - especialmente os
países europeus e o Japão - perderam todo seu vigor e hoje tem imensas
dificuldades para se manter competitivos diante dos emergentes. Como
vamos sair disso não é simples, mas uma coisa é certa: vamos ter que
olhar para a demografia com muita atenção.
Hora de rever os conceitos
Nesse ponto, é importante lembrar que as mudanças demográficas pelas
quais as populações têm passado certamente não são as únicas causas de
fenômenos tão complexos como miséria, surtos de prosperidade ou perda de
competitividade internacional, em um mundo tão complexo. Mas a
demografia tem fornecido explicações poderosas, que nos ajudam
muitíssimo a entender como o mundo se tornou o que é, as transformações
pelas quais ele está passando, e como podemos lidar com problemas
previsíveis no futuro. Não é sábio que continuemos a ter barreiras
contra uma visão tão útil do mundo. Se você acha que nunca é por causa
da demografia, então é hora de rever seus conceitos. Nos livrarmos desse
tabu nos abre para percepções do mundo das quais nesse momento, mais
que nunca, precisamos.
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http://www.oeco.org.br/fernando-fernandez