quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Filosofia na Conservação Ambiental - Heidegger: “salvar é deixar-ser” por Nancy Mangabeira Unger

Heidegger:  “salvar é deixar-ser”
Nancy Mangabeira Unger

in http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/publicacao4.pdf
(pag 157 a 165)

Os mortais habitam à medida que salvam a terra, tomando-se a
palavra  salvar  em  seu  sentido  antigo,  ainda  usado  por  Lessing.
Salvar não diz apenas erradicar um perigo. Significa, na verda-de: deixar alguma coisa livre em seu próprio vigor. (...) Os mor-tais  habitam  à  medida  que  acolhem  o  céu  como  céu.  Habitam
quando permitem ao sol e à lua a sua peregrinação, às estrelas a
sua via, às estações dos anos a sua benção e seu rigor, sem fazer
da noite dia nem do dia uma agitação açulada. (“Construir, ha-bitar, pensar”, em Ensaios e conferências, p. 30.)
Opensador  alemão  Martin  Heidegger  ( 889- 976)  é  considerado  um
dos  maiores  filósofos  do  século  XX,  tendo  influenciado  de  manei-ra  determinante  pensadores  como  Foucault,  Lacan  e  Derrida,  entre
tantos outros.
Embora  nunca  tenha  falado  em  meio  ambiente  ou  ecologia,  seus  escritos
constituem  uma  referência  preciosa  para  aqueles  que  querem  pensar  a  questão
ambiental  a  partir  de  seus  fundamentos.  Para  isso,  é  necessário  compreender  a
dinâmica de uma civilização que reduziu todos os seres – e finalmente até o pró-prio ser humano – à condição de objetos para a afirmação do sujeito humano que,
tomado por uma busca insaciável de poder e controle, se erigiu não só em mestre
*  Filósofa, doutora em Filosofia da Educação, professora da Universidade Federal da Bahia.
e  senhor  da  natureza,  mas  em  centro  ontológico  do  real.  Heidegger  dirá  que  é
esta compreensão do Ser como objetividade que possibilitará que a racionalidade
tecnológica seja usada para oprimir a natureza e os outros homens. Uma vez que
o  ser  humano  esquece  que  sua  vocação  existencial  é  de  ser “a  casa  do  ser”,  ou  o
canal  através  do  qual  o  cosmos  pode  se  presentificar  de  novas  maneiras,  então  o
próprio  homem  pode  ser  visto  como  mero  objeto  cuja  exploração  se  justifica  na
busca de mais e mais poder.
A  gravidade  da  situação  que  hoje  atravessamos  começa  a  tornar  manifes-to,  para  um  número  crescente  de  pessoas,  que  a  crise  ambiental  é  o  sintoma,  a
expressão  de  uma  crise  que  é  cultural,  civilizacional  e  espiritual.  Uma  crise  que
nos  obriga  a  pensar  esta  questão  que  ficou  esquecida  por  tanto  tempo:  a  nossa
compreensão do Ser. O pensamento de Martin Heidegger questiona a base antro-pocêntrica e auto-referencial do humanismo moderno. Busca uma nova dimensão
do pensar que supere a racionalidade unidimensional hoje dominante, mostrando
que  a  noção  do  ser  humano  como  sujeito,  fundamento  de  toda  verdade,  valor  e
realidade, é historicamente datada e pode ser desconstruída. Heidegger rememora
a presença do Mistério da realidade que se manifesta em todo “é” de tudo que é,
pondo-se  à  escuta  do  sentido  essencial  da  época  da  técnica  na  qual  vivemos.  A
filosofia heideggeriana não constitui um sistema fechado: antes, indica um modo
de caminhar, no pensamento e na vida.
Para  aqueles  que  pensam  a  questão  ecológica  em  seus  aspectos  filosóficos  e
espirituais,  é  de  singular  importância  uma  ética  que  nos  permita  viver  harmonio-samente sobre a terra, e que se baseie no sentido de respeito e de cordialidade por
este  lugar  e  por  seus  habitantes.  O  sentido  originário  da  palavra  grega  ethos  é  de
morada, não no sentido de uma construção material com paredes e teto, mas como
a ambiência, o modo de ser em que o ser humano realiza sua humanidade.
No pensamento de Heidegger, todo morar autêntico está ligado a um pre-servar.  Preservar  não  é  apenas  não  causar  danos  a  alguma  coisa.  O  preservar  ge-nuíno tem uma dimensão positiva, ativa, e acontece quando deixamos algo na paz
de  sua  própria  natureza,  de  sua  força  originária.  Assim  também,  salvar  não  tem
unicamente  o  sentido  de  resgatar  uma  coisa  do  perigo:  salvar  é  restituir,  ou  dar
condições para que ela se revele naquilo que lhe é mais próprio. Salvar realmente
significa deixar-ser.
Se o morar genuíno deixa que cada ser desabroche na plenitude de sua essên-cia, a dominação está ligada a todo fazer, a todo pensar, nos quais o homem projete
sobre as coisas a sombra de sua própria vontade e as transforme em objetos de sua
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propriedade.  Esta  atitude,  que  está  a  um  passo  da  espoliação,  é  característica  da
concepção moderna do que seja conhecer. A imposição unilateral deste modo de se
relacionar com o real ofusca os seres e corresponde a um estreitamento da capaci-dade humana de experienciar a vida.
Esta determinação, talvez muito precisa, da pedra continua um número, mas
o  que  significa  verdadeiramente  para  nossa  experiência  o  peso  da  pedra  enquanto
fardo,  enquanto  gravidade,  escapou-nos.  Este  pensamento  se  revela  nas  seguintes
reflexões de Heidegger:
Nós  chamamos  este  chão  de  terra.  O  que  esta  palavra  diz  não
deve ser associada com uma massa de matéria depositada em al-gum lugar, ou com uma idéia meramente astronômica do planeta
[...]. Uma idéia meramente astronômica do planeta Terra e uma
idéia  da  terra  como  uma  massa  distribuída  em  algum  lugar  não
dizem o que a terra é. A terra é o lugar onde tudo que surge, tudo
que cresce, volta a encontrar abrigo (Heidegger, 97 , p. 42).
[...]
Uma  pedra  pressiona  para  baixo  e  manifesta  seu  peso.  Mas,
enquanto  esse  peso  exerce  sobre  nós  uma  pressão  de  oposição,
recusa-nos  qualquer  penetração  em  seu  interior.  Se  tentarmos
tal  penetração,  quebrando  a  pedra,  mesmo  assim  ela  não  nos
mostra,  em  seus  fragmentos,  qualquer  coisa  interior  que  tenha
sido  assim  descoberta.  A  pedra  instantaneamente  se  recolheu
novamente  para  dentro  da  mesma  opaca  pressão  e  volume  de
seus fragmentos. Se tentarmos agarrar o peso da pedra de outra
maneira,  colocando  a  pedra  numa  balança,  nós  meramente  a
traremos para a forma de um peso calculado (op. cit.,p.46-47).
Em outro momento inspirado, Heidegger afirma:
A cor brilha, e quer somente brilhar. Quando a analisamos em
termos racionais, medindo suas ondas, ela já se foi. Ela se mos-tra  somente  quando  se  manifesta  velada  e  inexplicada.  Assim,
a  terra  estilhaça  toda  tentativa  de  nela  penetrar.  Ela  faz  com
que  todo  agir  inoportuno  e  meramente  calculador  sobre  ela  se
torne uma destruição. Essa destruição pode se apresentar sob a
aparência  do  domínio  e  do  progresso,  na  forma  da  objetivação
técnico-científica da natureza, mas esse domínio permanece, en-tretanto, uma impotência da vontade (Heidegger, 97 , p. 47).
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O velado da terra, a pedrice da pedra, o brilho da cor não podem ser reduzi-dos  unicamente  ao  que  o  pensamento  do  cálculo  apreende,  porque  são  ontofanias,
modos de revelação do ser, que possibilitam múltiplos sentidos e remetem a diversos
níveis de experiência. Se a imposição unilateral deste modo de se relacionar com o
real  constitui  o  desenraizamento  próprio  do  homem  moderno,  o  morar  que  é  um
preservar  e  salvar,  isto  é,  que  deixa-ser,  propicia  ao  ser  humano  a  condição  de  um
novo enraizamento.
Os  “mortais”,  que  Heidegger  contrapõe  ao  homem  planetário,  são  aqueles
que  sabem  habitar,  morar,  no  sentido  pleno  da  palavra,  isto  é,  que  sabem  respeitar
a Terra e seus seres, acolher e preservar, deixar o próximo ser próximo e o distante
ser distante, reconhecer o sagrado, assumir a morte. São os seres humanos que são
capazes  de  acolher  a  morte  enquanto  morte,  isto  é,  de  percorrer  todas  as  transfor-mações e metamorfoses da vida.
Segundo Heidegger, a filosofia que fundamenta o desenvolvimento da tecno-logia moderna – a filosofia moderna – estabelece uma relação inteiramente nova do
homem com o mundo. O mundo doravante aparece como um objeto, e unicamente
como um objeto, a ser enquadrado e controlado. Esta relação se dá sob a égide de
uma dimensão do pensar que Heidegger chama “o pensar que calcula”.
O mundo aparece agora como um objeto sobre o qual o pensar
que calcula dirige seus ataques, e a estes nada mais deve resistir.
A  natureza  torna-se  um  único  reservatório  gigante,  uma  fonte
de  energia  para  a  técnica  e  a  indústria  modernas  (Heidegger,
980, p. 4 ).
Segundo Heidegger, o pensar que calcula é indispensável, mas é uma dimen-são do pensamento. Sua especificidade reside no fato de que, quando planificamos
e  organizamos,  lidamos  sempre  com  condições  já  dadas  de  fazê-las  servir  a  algum
objetivo  específico.  O  pensar  que  calcula  computa  sempre,  mesmo  que  não  traba-lhe nem com computadores nem com números; computa novas possibilidades para
chegar a resultados definidos.
O  cálculo,  que  domina  o  modo  de  ser  do  homem  planetário,  não  designa
simplesmente  a  prática  do  saber  matemático,  mas  “um  modo  de  comportamento”
que  determina  todo  tipo  de  ação  e  atitude  desse  homem.  Segundo  Heidegger,  sua
exacerbação  é  a  atitude  que  só  reconhece  como  real  a  ação  prevista,  organizada,
planificada. O cálculo, enquanto tal, se opõe a todo movimento espontâneo daquilo
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que  cresce  a  partir  de  si  mesmo,  daquilo  que  se  move  a  partir  de  seu  crescimento
intrínseco.  Para  ele,  os  avanços  tecnológicos  resultantes  da  exploração  da  energia
atômica  deflagraram  um  movimento  que  se  desenvolve  num  ritmo  sempre  mais
acelerado, que já independe da vontade do homem. A planetarização de uma socie-dade  que  aboliu  fronteiras  espaciais  e  temporais  coloca  um  desafio  para  o  homem
contemporâneo enquanto tal: o desafio de aprender a lidar com o poder da técnica.
Para que isso aconteça, precisa compreender seu sentido.
Heidegger não propõe uma recusa do mundo tecnológico. Seria uma insen-satez, afirma ele, atacar a tecnologia cegamente. Precisamos das invenções técnicas
e  delas  dependemos.  Aquilo  de  que  não  precisamos  e  do  qual  nem  dependemos  é
manter uma relação de tal modo unidimensional com o tecnológico que essa relação
se  torne  uma  servidão.  O  que  podemos  fazer  é  aprender  a  lidar  com  o  poder  que
o mundo tecnológico traz, cuidando sempre para que essa relação seja de indepen-dência. Entretanto, Heidegger alerta para o profundo perigo da situação vivida pelo
homem contemporâneo.
A  onda  que  se  aproxima  da  revolução  tecnológica  poderia  de
tal modo cativar, enfeitiçar, seduzir e absorver o homem, que o
pensamento  que  calcula  viesse  um  dia  a  ser  aceito  e  praticado
como o único modo de pensamento (Heidegger, 980, p. 47).
Se isso acontecesse, o ser humano se alienaria de sua natureza essencial, que
é  a  de  ser  um  ser  que  medita,  ou  seja,  um  ser  que  ausculta  o  sentido  de  tudo  que
existe.  É  esta  via  de  um  pensar  meditante  que “exige  de  nós  que  não  nos  fixemos
sobre um só aspecto das coisas, que não sejamos prisioneiros de uma representação,
que não nos lancemos sobre uma via única numa única direção” (Id., p. 44).
Para  isso,  é  preciso  uma  atitude  de  que  se  dispõe  a ‘deixar-ser’  os  seres  e  as
coisas,  inclusive  os  objetos  tecnológicos.  Podemos  reconhecer  nos  objetos  tecnoló-gicos,  que  fazem  parte  de  nosso  cotidiano,  seu  lugar  de  coisas  que  não  têm  nada
de  absoluto,  e  que  dependem  de  uma  realidade  mais  alta.  Ao  pensar  o  mundo  da
técnica  no  qual  estamos  envolvidos,  Heidegger  convida-nos  à  mesma  atitude  de
desapego e deixar-ser. Podemos dizer sim à utilização dos objetos técnicos e, ainda
assim, manter-nos livres diante deles. Podemos “deixar-ser” estes objetos como algo
que não nos envolve intimamente; dizer ao mesmo tempo “sim” e “não” aos objetos
tecnológicos é não permitir o estabelecimento de uma relação de exclusividade com
eles – que é a relação na qual o homem contemporâneo termina por ser dominado
pelo mundo tecnológico que ele mesmo criou.
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É importante enfatizar que a palavra técnica, para Heidegger, não se limita
aos objetos tecnológicos, mas a toda atitude que se desenvolve no enquadramento
da  racionalidade  unilateral  que  reduz  os  outros  seres  à  condição  de  objetos  cujo
único  valor  reside  em  como  podem  ser  utilizados  pelo  sujeito  humano.  Aquele
que “deixa-ser”  instaura  uma  relação  simples  e  pacífica  com  as  coisas,  ao  mesmo
tempo  em  que  lida  com  elas;  reconhece  que  o  mundo  tecnológico  não  é  o  único
modo segundo o qual as coisas podem ser. O universo não se resume a uma soma
de objetos, conhecidos ou ainda não conhecidos, que estariam a dispor do ser hu-mano.  No  enquadramento  do  mundo  da  técnica,  outros  modos  de  desvelamento
dos seres foram ofuscados, na medida em que o homem projetou a sombra de sua
vontade de poder sobre todas as coisas, vendo-as unicamente como objetos de um
sujeito egocentrado e onipotente.
Este  ofuscamento  corresponde  a  um  empobrecimento  do  próprio  ser  hu-mano,  um  estreitamento  de  suas  potencialidades  de  sensibilidade,  percepção  e
pensamento.  No  pensamento  de  Heidegger,  tal  processo  provém  de  um  esqueci-mento: o esquecimento do sentido do Ser, que é simultaneamente o esquecimento
de nosso verdadeiro ser, de nossa identidade autêntica. No entanto, só esquecemos
aquilo que já soubemos; só perdemos aquilo que já tivemos e que, por isso mesmo,
podemos recordar e restituir. Este re-encontro se dá mediante uma mudança radi-cal em nossa postura de vida; a disposição de “deixar-ser” os outros seres, a renún-cia ao desejo voraz de tudo controlar e possuir. Na medida em que isso acontece,
podemos  reatar  com  a  experiência  que  os  gregos  antigos  chamavam Thaumas,  a
experiência  da  admiração  e  do  espanto  diante  da  presença  do  extraordinário  no
comum e cotidiano.
Heidegger,  ao  tomar  a  ética  no  seu  sentido  grego  de  morada,  revela  sua
dimensão de ambiência, isto é, a ética como modo em que o ser humano realiza
sua  humanidade.  É  neste  sentido  que  Heidegger  se  reporta  à  palavra  do  pen-sador  pré-socrático  Heráclito  de  Éfeso  (séc.  VI  a.C.): “A  morada  do  homem  é
o  extraordinário”.  Uma  das  ressonâncias  que  esta  palavra  de  Heráclito  desperta
é  o  assinalar  o  ser  humano  como  ser  que  está  sempre  aberto  –  quer  ele  o  saiba
ou  não  –  à  possibilidade  de  dar  testemunho  da  eclosão  do  extraordinário  –  a
plenitude do Ser – em sua manifestação nos seres de nosso mundo. O lugar do
ser humano no todo é dar testemunho desta epifania do Ser. Na arte, na poesia,
no  ritual,  e  até  na  tecnologia  fiel  a  sua  significação  originária,  alcançamos  a
nossa  autêntica  humanidade  à  medida  que  nos  dispomos  a  ser  o  que  constitu-tivamente  já  somos  –  o  lugar,  a  abertura  para  a  manifestação  do  Ser  em  todos
os seres. Esta visão sobre o sentido da jornada do humano pode ser encontrada
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em  diversos  momentos  da  obra  de  Heidegger,  entre  os  quais  destacamos  uma
citação do seu texto A caminho do campo, escrito em 949 (com edição em por-tuguês, em 977):
Ele  deixa  o  portão  do  jardim  do  Paço  e  corre  para  Ehnried.
Por  sobre  o  muro  do  jardim,  as  velhas  tílias  o  acompanham
com  o  olhar,  quer,  pela  Páscoa,  ele  brilhe  claro  entre  o  ger-minar  das  semeaduras  e  o  despertar  dos  prados,  quer,  pelo
Natal,  desapareça,  atrás  da  primeira  colina,  entre  flocos  de
nevadas. A partir da cruz, vira em direção à floresta. De pas-sagem pela orla, saúda um alto carvalho, em cuja sombra está
um banco talhado a cru.
Nele  repousava  às  vezes  um  ou  outro  texto  dos  grandes
pensadores,  que  o  desajeito  de  um  novato  tentava  decifrar.
Quando  os  enigmas  se  acumulavam  e  nenhuma  saída  se
apresentava, servia de ajuda o Caminho do Campo. Pois em
silêncio  conduz  os  passos  por  via  sinuosa  através  da  ampli-dão da terra agreste.
Pensando,  de  quando  em  vez,  com  os  mesmos  textos  ou,  em
tentativas  próprias,  o  pensamento,  sempre  de  novo,  anda  na
via  que  o  Caminho  do  Campo  traça  pela  campina.  Ele  per-manece  tão  próximo  dos  passos  de  quem  pensa,  como  do
homem da terra que, nas primeiras horas da manhã, se enca-minha para a ceifa.
[...]
Entrementes, a consistência e o odor da madeira do carvalho
começavam a falar mais perceptivelmente da lentidão e cons-tância com que a árvore cresce. O próprio carvalho afirmava:
só  este  crescer  pode  fundar  o  que  dura  e  frutifica.  Crescer
significa  abrir-se  à  amplidão  dos  ceús  mas  também  deitar
raízes  na  escuridão  da  terra. Tudo  que  é  maduro  só  chega  à
maturidade se o homem for, ao mesmo tempo, ambas as coi-sas: disponível para o apelo do mais alto céu e abrigado pela
proteção  da  terra  que  tudo  sustenta.  É  o  que  o  carvalho  diz
sempre ao Caminho do Campo, que lhe passa ao lado seguro
de sua via (Heidegger, 977, pp.46-47).
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Há  pouco  mais  de  400  anos,  acostumamo-nos  a  pensar  a  identidade  do
homem como a do sujeito em si mesmo fundado, cuja humanidade se realiza na
razão  direta  de  sua  capacidade  de  tudo  controlar.  A  dimensão  de  nosso  pensa-mento, a dinâmica de nosso pensar acompanham esta determinação do homem
com  o  sujeito  em  todas  as  suas  características  de  dicotomização,  unidimensio-nalidade e reificação.
A  radicalidade  da  crise  que  vivemos  nos  põe  diante  da  necessidade  de
questionar  não  somente  os  nossos  conceitos  e  preconceitos,  mas  a  própria  di-mensão na qual pensamos. Para esta tarefa o pensamento de Martin Heidegger
constitui, sem dúvida, uma das mais importantes referências de nosso tempo.
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Referências
HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. [Trad. Emmanuel Carneiro Leão]. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 967.
______. Sobre o problema do ser / O caminho do campo. São Paulo: Duas Cidades,
969.
______. “The origin of the work of art”. In: HOFSTADTER, Albert (org. e trad.)
Heidegger, poetry, language, thought. New York: Harper and Row, 97 .
______. O caminho do campo. [Trad. Emmanuel Carneiro Leão]. Revista de Cul-tura. VOZES, v.LXXI, maio/ 977.
______. Serenité. [Trad. André Préau]. In: HEIDEGGER, M. Questions III et IV.
Paris: Gallimard, 980.
______. O que é isto – a filosofia? e Identidade e Diferença. In: Conferências e escri-tos filosóficos. São Paulo: Nova Cultural, 99 . (Coleção Os Pensadores, 5)
______. Construir, habitar, pensar. In: HEIDEGGER. Ensaios e conferências. Petró-polis: Vozes, 2002

sábado, 9 de novembro de 2013

Reserva Indígena Awa - Maranhão [Fotos: Sebastião salgado - Reportagem: Miriam Leitão]


Paraíso sitiado


O drama dos índios Awá e a resistência de seu povo que tenta impedir a ação criminosa de madeireiros na Reserva Biológica Gurupi, onde o território indígena já perdeu 30% de sua paisagem original.


Reportagem: Míriam Leitão - Fotos: Sebastião Salgado

Sobreviver com coragem

Considerados um dos últimos povos caçadores e coletores do planeta, os poucos mais de 400 Awá que povoam o que restou da Floresta Amazônica no Maranhão vivem o momento mais decisivo de sua sobrevivência: impedir que grileiros, posseiros e madeireiros destruam o seu mais valioso bem. É das árvores e da mata densa situadas na Reserva Biológica do Gurupi, de onde tiram o seu alimento, a sua certeza de amanhã poderem garantir a continuação de seu povo, de sua gente. Eles não querem nada mais do que a garantia do governo federal de que não terão o seu terrítório devastado pela ganância do homem branco, que avança a passos largos em busca de madeira nobre.


Apesar de sua terra já estar demarcada, homologada e registrada com 116.582 hectares pela União, eles enfrentam uma ameaça real de assistir à destruição da floresta da qual são tão dependentes e de onde tiram o sustento de seus filhos. Ainda que a Justiça já tenha determinada a retirada desses 'intrusos' ou não índios, como define a Funai, os Awá temem pela própria sorte, se afirmam em sua coragem e não vacilam quando veem sua resistência em xeque. "Não temos medo. Vamos resistir", dizem em discursos emocionados.

Madeireiros impõem sua lei na terra dos Awá

  • Em emboscadas armadas por jagunços e pistoleiros, comerciantes de madeira demostram ter mais força do que a Polícia Federal e a Força Nacional juntas, relata funcionário da Funai


A ponte estava queimando e do lado de lá do fogo estavam uns 50 homens contratados pelos madeireiros; vários deles pistoleiros conhecidos da região. Os homens apontaram suas armas para a Polícia Federal, Força Nacional, Ibama e Funai, que vinham, em comboio, trazendo abundantes provas de crime de desmatamento em terra indígena em 17 caminhões apreendidos, motosserras, motocicletas, tratores e 35 presos.

Era madrugada num povoado perdido no Maranhão com o nome de Varig. E aquilo era uma emboscada. Os madeireiros e seus jagunços levaram a melhor no confronto. O Estado brasileiro teve que recuar. O lado da lei era mais fraco do que o exército organizado pelo crime.
O espantoso fato, que hoje faz parte de relatórios, me foi contado por Claudio Henrique Santos de Santana, 49 anos, há 28 anos funcionário da Funai e, naquele momento, motorista do primeiro caminhão. Aconteceu em junho do ano passado e merece ser relatado para se entender com que desenvoltura o crime de desmatamento age impunemente no Maranhão. Os representantes do Estado brasileiro tentaram dialogar. Foi inútil. Em silêncio, com a ponte em chamas, as armas apontadas, o crime foi mais eloquente.
O dia havia começado bem cedo. Na Aldeia Juriti os índios repetiram para os policiais, com a ajuda de Patriolino Garreto — chefe do posto, na tradução da lingua guajá — que estavam ouvindo o barulho dos tratores e das motosserras na floresta.
Ninguém ouvia nada, mas ninguém duvidava. Os Awá têm uma acuidade auditiva muito superior à de qualquer outro ser humano. Eles desenvolveram, ao longo dos séculos de sua história de fuga e movimento na mata, uma capacidade de ouvir além do normal.
Escolheram dois índios mais velhos para servir de guia. Patriolino foi junto. Atrás os seis integrantes da Força Nacional, um funcionário do Ibama e três da Funai. Os três da Polícia Federal e outro funcionário do Ibama ficaram na Aldeia Juriti.
Já havia começado uma operação de prisão de madeireiros na região, na qual tinha tomado parte Hélio Sotero, que hoje está na chefia da operação de retirada dos não-índios da terra Awá. Durante a operação, chegou até ele o alerta dos índios sobre a presença de madeireiros na floresta. Assim se organizou o grupo que foi até a Aldeia Juriti apurar o que eles estavam informando.
— Viemos de Santa Inês, até a casa do seu Raimundo Porca. — contou Santana, referindo-se a um posseiro antigo, vizinho da terra indígena, que tem sido aliado da Funai.
— Mandamos a bagagem por barco e viemos a pé para a aldeia. Na manhã seguinte, saímos. Os índios na frente, e nós, a pé, atrás. Andamos 20 quilômetros pela floresta até avistarmos o acampamento. Ouvimos então o barulho da motosserra cortando as árvores e o trator de esteira fazendo o limpo para pôr as toras — descreve Claudio Santana.
Eles mandaram os índios voltarem à aldeia para não expô-los aos riscos de serem depois reconhecidos pelos madeireiros. Patriolino, com eles.
— Nós ouvimos o barulho de um caminhão se aproximando. Tinha um tronco de árvore caído e nós o colocamos para bloquear o caminho. O caminhão parou no tronco. Nós, que estávamos escondidos no mato, aparecemos e o abordamos. Estavam o motorista e o ajudante dele, o catraqueiro, que usa a catraca para pegar os troncos. Fizemos essa primeira apreensão, tiramos a tora, e fomos no caminhão, escondidos, com o motorista dirigindo para não assustar as pessoas do grupo. Quando o caminhão encostou, as pessoas vieram falar com o motorista e nós aparecemos e prendemos todos — relata Claudio.
Eram cinco pessoas no acampamento, duas motosserras, duas motocicletas cross novinhas e um trator. Os bandidos conseguiram travar o trator, mas sob a ameaça da Força Nacional foram conduzindo todos para os outros acampamentos. Foi assim o dia inteiro. Ao todo, conseguiram chegar em mais sete acampamentos. Pegaram três tratores de esteira, armas, motos, motosserras, 16 caminhões e prenderam 35 pessoas. Quatro caminhões não puderam ser levados porque os motoristas conseguiram travar o motor.
— A gente passou o dia e anoiteceu nessa operação. Ninguém parou para comer, para descansar, eram três e meia da manhã, nós estávamos viajando quando vimos na estrada um carro cheio de toras. Eram os nossos três companheiros da Polícia Federal e um do Ibama, que havia saído da Aldeia Juruti pelo outro lado e apreendido aquele caminhão. Estavam nos esperando. Aí formamos esse comboio de 17 caminhões. Nossa intenção era soltar no povoado de Varig pessoas que não tinham a ver diretamente com o crime, como a cozinheira. Ou os peões que não nos levariam aos cabeças do crime.
A próxima parada seria Buriticupu, uma famosa cidade madeireira. Depois, uma cidade maior: Santa Inês, onde deixariam os presos e o fruto do crime.
— Eu dirigia o caminhão da frente, quando entrei no povoado e avistei a ponte em chamas. Era a emboscada. Eles queimaram a ponte para nos deter e ficaram de tocaia — disse Cláudio.
O comboio dos 17 caminhões e tratores parou. Não havia por onde escapar. As autoridades tentaram conversar, outros foram verificar se dava para passar pela ponte, mas as tábuas já estavam se desfazendo.
Do lado de lá os bandidos estavam em maior número, com melhor armamento, e maiores chances. Não havia o que fazer.
Do lado de cá eram apenas os funcionários da Funai que não portam armas, dois do Ibama, e os nove integrantes da Força Nacional e Polícia Federal.
Os bandidos exigiram a soltura de todos os presos e abandono dos caminhões e tratores. Era fazer isso ou iniciar o tiroteio.
— Estávamos em menor número e não tínhamos armas suficientes. Deixamos tudo lá e fomos de carro, por outra estrada, pensando em fazer um contorno até Buriticupu para relatar o ocorrido.
A estrada levava ao povoado com o nome de Aeroporto mas não ia até Buriticupu. Eles tiveram que voltar e quando chegaram, encontraram a cidade sob toque de recolher imposto pelos bandidos, a ponte consertada com novas tábuas, os caminhões recolhidos nas serrarias e oficinas da região, e os presos já tinham sumido.
— Ficaram no chão apenas as toras de madeira na estrada jogadas de um dos caminhões.
As forças policiais tinham como prova dessa desmoralizante ação, em que o crime mostrou ser mais forte que o Estado brasileiro, os documentos dos presos, cadernos de anotações, celulares e muitas licenças de transporte de madeira emitidas pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Maranhão.

Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/pais/madeireiros-impoem-sua-lei-na-terra-dos-awa-9350252#ixzz2kDjgudsd


Terra Awá: no caminho da volta, o encontro com o crime

  • Na estradas que ligam terra Awá, grileiros, serrarias e caminhões agem na certeza da impunidade
Miriam Leitão
Publicado:
Estrada de São João do Carú a Zé Doca, Maranhão - Eram 18h35 quando entramos em uma enorme serraria, em Conquista, no Maranhão. Havia sido um dia difícil e ainda estávamos longe de Santa Inês, onde dormiríamos. A equipe da Funai e eu havíamos saído cedo da Aldeia Juriti, na terra Awá, e viajado por estradas de chão, cruzando com carregamentos clandestinos de madeira. A serraria funcionava quase no escuro, iluminada por várias fogueiras ao fundo, e pelos faróis dos enormes caminhões que entravam e saíam do pátio de manobras. O ambiente era soturno. Um enorme caminhão madeireiro vazio deixava o local, outro estava estacionado com 12 toras. Outro, chegava com nove. No chão, pilhas de madeiras já descarregadas.

Tudo informava a natureza ilegal daquela atividade econômica. Quando desci do carro, vi apenas o vulto de um homem se afastando das serras-fitas e outras máquinas que fazem o primeiro processamento da madeira. Eu o chamei. Ele parou. Chamei mais alto, ele hesitou, mas voltou.
Comecei a perguntar. De onde vem a madeira? Quem é o responsável? As respostas eram lacônicas. De vários pontos da penumbra surgiram homens. Onze saíram não se sabe de onde. Levantei o gravador para melhor registrar a conversa, por causa do barulho forte dos motores dos caminhões.
— O responsável? Tá lá atrás. Como é mesmo o nome dele? Acho que é Darlan — disse um.
Outro informou que o dono da serraria se chamava Gilvan. Mas não estava.
— De onde está vindo essa madeira?
— Não sei, porque daqui de dentro eu não saio — disse um.
Perguntei se as árvores tinham sido extraídas da terra indígena, que ficava ali perto.
— Rapaz, a gente não sabe porque encontra a madeira no pátio — respondeu um deles.
— Essa é madeira mista, madeira fraca não vem de terra indígena — garantiu outro.
Havia, segundo Hélio Sotero, da Funai, entre os troncos, ipê, maçaranduba, jatobá com diâmetros que só podem ser encontradas no que resta de floresta no Maranhão, ou seja, em terras indígenas.
— Vocês sabem que tudo isso é crime, não sabem? — perguntei.
— Dependendo das consequências que pegue — respondeu um dos homens.
Quiseram saber se eu era do Ibama. Eu me identifiquei dando nome e local de trabalho e pedi que avisassem ao dono que se quisesse me dar alguma explicação poderia me procurar.
Eles trabalhariam a noite inteira naquele processamento da madeira que depois iria, impunemente, para outras partes do país. Um deles contou que o trabalho iria até às cinco e meia da manhã. As madeireiras daquela região funcionam durante a noite e se escondem, camufladas, atrás de altos tapumes de madeira e árvores plantadas na frente. Passando pelas ruas de pouca iluminação nada se vê. Naquela conseguimos entrar porque o portão estava aberto para a entrada e saída dos caminhões.
Durante o dia, pela estrada que liga São João do Caru a Paragominas, no Pará, ou na que vai para Zé Doca, no Maranhão, encontramos muitos caminhões madeireiros, vazios ou cheios. Na estrada de chão marcas dos pneus deixavam rastros de que a atividade tinha começado mais intensa este ano. Havia trechos tão precários nos quais é preferível rejeitar a ponte e arriscar ir pela água.
Após uma curva, vimos de longe, num trecho da estrada que corta a terra indígena, um caminhão parado. Mais perto foi possível constatar o que ele fazia: 23 toras na beira da estrada estavam sendo embarcadas. Três homens manejavam o equipamento de pegar as toras. Abordei o motorista que, para falar comigo, subiu em uma das toras.
— Meu nome é Lenilson Pinheiro.
Ele me informa que está levando a madeira para a cidade de Zé Doca e que o dono da extração é um posseiro da região.
— O senhor é madeireiro?
— Não, sou apenas o transportador.
— Estou vendo muito caminhão trafegando por aí; estão em plena temporada?
— É só agora na época da seca.
— O senhor sabe que isso é crime?
— Realmente é.
— O senhor participa de crime?
— Mas minha profissão é essa.
— O senhor não quer me contar de onde tira e para onde leva a madeira, já que é só transportador?
Lenilson abaixa a cabeça e diz: “É difícil”.
Os caminhões madeireiros foram o que mais encontramos naquelas estradas. Numa fazenda, em plena terra dos Awá, o dono não está. O nome é Ronaldo Lage, mora no Piauí, e o funcionário que nos atende diz chamar-se Jairo Real.
— A fazenda ocupa aqui uns 800 hectares. Criamos 450 bois, além de um pequeno plantio de arroz.
A madeira que está no pátio da fazenda, empilhada, é “tirada daqui mesmo”, diz ele. Avisei ao funcionário quem eu era e como o dono poderia me encontrar, se quisesse explicar por que tem uma fazenda em terra indígena.
Mais adiante, outra fazenda. Andamos perto da cerca olhando as centenas de bois, até que fomos abordados por um rapaz numa moto. Ele avisou que o dono, senhor Maranhão, viria falar comigo.
O verdadeiro nome de “Maranhão” é Hilário da Silva. Tem 800 cabeças de gado e ocupa, segundo informa, 1.100 hectares da terra.
— Nunca vi índio por aqui — diz ele.
De cima do seu cavalo, o fazendeiro fala com segurança:
— Vamos nos defender, eu só saio daqui tocado, não aceito recado não.
O recado no caso é a ordem judicial para que, já esgotados todos os recursos, desocupem a terra.
— Temos deputados, temos advogados. Vamos fazer uma manifestação e vamos pedir a redução da terra indígena, porque não vamos sair, vamos dar trabalho para o governo.
— O que é dar trabalho para o governo?
— É não sair. Se botar nós fora daqui vai ter que vigiar, senão nós volta. Foi o sindicato, na época do Zé Doca, que assentou a gente aqui. Eu comprei particular e fui entrando aqui dentro. Só saio tocado.
— O que o senhor quer dizer com “sair tocado”?
— Só com recado nós não sai. Por que vamos sair? Os índios não dão conta da terra que têm. Os índios não trabalham. Vem muita gente para a manifestação em São Luis, os deputados, inclusive federais. E nós vamos fazer a CPI da Funai. A senhora sabe não é? Ela está desapropriando o povo daqui.
— Mas é a Justiça que está mandando sair.
— Agora nós vamos descobrir se ela está certa, com a CPI nós vamos descobrir. CPI em Brasília em cima da Funai. Já foi aprovada e nós temos advogado que corre atrás de tudo isso aí.
O fazendeiro ficou o tempo todo da conversa em cima do seu cavalo, do lado de lá da cerca. Vários funcionários tocavam o gado. Disse que é um pequeno produtor. Quando lembro que seus números não são de pequeno, admite ser médio. E diz que há outros como ele por aquele território. Mas muitos posseiros mais pobres.
— Deve ter uns 20% que são como eu.
Nas estradas de chão que ligam São João do Carú a Paragominas, abertas por um ex-prefeito de São João que é madeireiro, ou pela estrada que leva até Zé Doca — nome que homenageia um grande incentivador da grilagem — é fácil encontrar grileiro, caminhão madeireiro, serraria ilegal, vários sinais do ataque sistemático ao bem público e à floresta. Difícil é encontrar polícia. Não vi nenhum sinal de repressão ao crime. A única presença do Estado viajava comigo no carro. Eram três funcionários da Funai, que depois fizeram relatórios denunciando o que viram. Passei o dia respirando poeira e carregando a perturbadora sensação de estar numa terra sem lei. Ao olhar nos olhos de grileiro, transportador de madeira, trabalhadores de serraria ilegal o que se vê é que eles nada temem. Sentem-se protegidos pela impunidade.

A tragédia do desmatamento atinge a terra e o céu

  • ‘Sempre ouvi falar que é terra indígena, mas não sei para onde vou’, diz posseiro
Miriam Leitão
Publicado:
Povoado do Caju, Povoado Cabeça Fria, Terra Awá, Maranhão — “O Maranhão é grande, mas tudinho tem dono”, diz José Ribamar de Araújo que mora num dos vários povoados dentro da Terra Indígena, justificando porque morava em área contestada num estado tão grande. Ele admitiu que desde 1983 soube que era terra indígena. Estava na casa de amigos. Casa de reboco onde há quatro anos mora Jardel dos Santos com sua mulher e enteado.

— Eu estou com a idade de 36 anos e nunca fui numa escola. Eu vou lhe falar, estou dependendo do que ganho aqui. Eu trabalho na roça, trabalho para qualquer um. Sempre ouvi falar que é terra indígena, mas não sei para onde vou — disse Jardel.
Ele almoçava em pé, me ofereceu cadeira e quis dividir o almoço. Sua mulher, Edilene Alves, acompanhava a conversa em silêncio, enquanto lavava a louça. Quem domina a conversa é mesmo José Ribamar, 56 anos, inteligente, bem humorado e também analfabeto. Conta uma história que parece realismo fantástico de antigo grileiro, já morto, Gilberto Andrade, que teria pegado muita terra e um dia morreu debaixo de sua própria carreta. Estava parado num carro, quando sua carreta de madeira bateu no carro.
— Morreu, mas era devedor. Era matador, tirou muita madeira. O homem era cru mesmo. Comeu muito filho alheio — disse ele, querendo dizer com isso que o tal senhor era um assassino.
A conversa flui fácil naqueles povoados.
— Rapaz, se todo mundo sair daqui, eu saio, porque a área falada todo mundo quer ser dono. Eu sei que é terra indígena. Índio caça e nós, quando dá, às vezes mata um bichinho pra comer, mas hoje tem que andar demais para achar caça porque o madeireiro é demais e emocionou a mata — disse José Ribamar de Araújo.
Jardel, o mais jovem, é mais triste.
— Aqui é difícil, não tem luz, a água tem que buscar lá embaixo, sofrimento aqui é grande demais. Eu não tenho emprego fixo, não tenho letra, tenho que derramar o suor, se todo mundo sair eu saio, mas não é de boa vontade — diz Jardel.
Já Ribamar lamenta a falta de escola em sua vida.
— Eu vejo a senhora, que tem alta mentalidade e muita matemática. Eu queria isso.
Os dois contam que têm estradas ali feitas por madeireiros ou por prefeitos que são madeireiros. Eu saía da casa, quando ouvi a voz de Edilene.
— Se dessem uma casa pra gente a gente sai, sem ter para onde ir fica ruim.
Mais adiante no povoado Cabeça Fria abordei moradores sentados debaixo de uma grande árvore. Uma mulher de 40 anos que teve derrame no último filho e vive de bolsa família e cujos pais ainda trabalham na roça, das fazendas que ocuparam a terra indígena. Um casal de trabalhadores rurais que trabalha como meeiro participa da conversa. A mulher, Maria Antonia Pinheiro, explica a dificuldade maior do trabalho.
— É muito difícil porque a gente planta arroz e colhe, depois vem o fazendeiro e joga capim braquiária e não dá outra roça de arroz porque o capim cresce. Eles roçam meio mundo de mata e planta capim. O que acaba com o pobre é isso.
Os dois também contaram nunca terem estudado. Perguntei se eles reagiriam caso a Justiça mandasse sair, eles disseram que não.
São essas pessoas que estão sendo chamadas para participar da resistência pelos maiores fazendeiros. Eles foram para lá já sabendo que era área de conservação, mas se dizem sem opções.

Surpresas na floresta

Míriam Leitão, O Globo
Um índio isolado não abre trilha quando anda na mata; ele negocia com a floresta, procurando as melhores chances de avançar. Esse é um dos sinais que as expedições conseguem captar. Por fortes indícios já testados, a Funai concluiu que existem 27 povos isolados em vários pontos da Amazônia, inclusive próximos a obras do PAC, como Belo Monte e usinas planejadas no rio Tapajós.
Desde 1987 a política brasileira mudou. Na democracia tomou-se essa decisão. Os principais indigenistas se sentaram para avaliar os contatos que cada um tinha feito e o resultado disso. Em geral, eram histórias tristes, de mortes por doença ou de perda de identidade cultural.
— O governo brasileiro decidiu então, após esse encontro, mudar a política e não forçar o contato. Tentar identificar as áreas onde estão e garantir que eles vivam sua vida. A intervenção ocorre só quando há risco iminente — diz Leonardo Lenin, coordenador-adjunto de um órgão criado a partir dessa mudança de política: a Coordenadoria Geral de Índios Isolados e de Recente Contato.
Em uma expedição feita em março e em outra em julho, funcionários da Funai confirmaram a presença de Awá isolados na Terra Caru, que fica ao sul da Terra Awá, e outro grupo na Terra Arariboia, mais ao sul ainda. Tudo no Maranhão. Para esse último grupo está sendo preparado um plano de contingência para a eventualidade de se forçar um contato. O risco é grande demais de deixá-los expostos a um encontro hostil com madeireiro, por exemplo.
Na terra indígena Arariboia vivem oito mil índios guajajara. Várias lideranças já foram cooptadas pelo crime de desmatamento. Houve uma queimada que destruiu 40% da reserva. O grupo que foi fazer a expedição passou uma noite inteira ouvindo som de tratores e motosserra na mata. Eles não vão sobreviver numa floresta que fica cada vez menor, cercada de madeireiros e índios em que algumas lideranças já foram corrompidas.
Na série de reportagens que fiz com Sebastião Salgado, ganhei do GLOBO generoso espaço no impresso e no online. Mesmo assim, sobraram fatos para serem apurados e explicados. Um é a questão de “índio isolado”. O que mesmo vem a ser isso? Todo o Brasil viu as fotos dos índios do Rio Envira, no Acre. Quem não acompanha o tema, pode ter concluído que aquela cena exótica dos índios flechando o avião é um caso único. Houve também notícias de outros índios isolados no Vale do Javari, mas existem mais casos do que se imagina.
— O número oficial é de 77 informes de sinais de índios não contatados, mas até agora foram confirmados casos de 27 povos isolados. Nestes, há um conjunto de informações muito fortes. Em muitos casos nós fazemos expedições para confirmar os relatos. Há muitas formas de registrar os sinais e, pela cultura material, identificar a etnia ou o tronco a que pertencem.
Os Awá tiveram mais atenção recente da Funai. Foram seguidas as pistas de grupos no Caru e em Arariboia.
— Normalmente encontramos esses pequenos sinais que eles fazem ao andar na mata. Foram encontrados tapiris (casas) abandonados e fogueiras como eles costumam fazer em seus acampamentos. Pelos sinais deixados, se vê que usam ferramentas muito antigas: machados que já não têm fio, que eles pegaram em algum acampamento e que usam até acabar. Eles, quando deixam um lugar, levam suas redes, arco e flecha e outros pertences, mas deixam sinais característicos, como marcas de coleta de mel ou açaí. O pessoal especializado em leitura desses sinais não tem dúvida de que o que vimos foi de índio isolado Awá, e não dos índios já aldeados — disse Leonardo Lenin, que acompanhou duas expedições. Ele afirma que os 27 povos isolados estão espalhados por Amazonas, Pará, Mato Grosso, Rondônia, Acre, Roraima, Amapá e Maranhão.
É espantoso que, tantos séculos depois da chegada dos portugueses, ainda haja índios isolados em tantas áreas do Brasil, mesmo que o espaço para eles esteja se estreitando. Algumas pistas estão sendo seguidas, de outras etnias, até perto das obras do PAC, como são as hidrelétricas do rio Tapajós ou a de Belo Monte.
O plano de contingência que está sendo feito agora, para os Awá da T.I. Arariboia, também poderá ser usado, se as obras das hidrelétricas acabarem tornando inevitável a iniciativa da Funai de contato com índios isolados na região. O Brasil é assim: complexo, diverso, desafiador.



Awás lutam contra a destruição dos madeireiros no que restou da Floresta Amazônica do Maranhão

  • Considerados um dos últimos povos caçadores e coletores, eles tentam sobreviver à ação criminosa dos desmatadores

No pouco que resta de Floresta Amazônica no Maranhão, vive o povo Awá, conhecido como “o mais ameaçado do planeta”. São pouco mais de 400 pessoas, cercadas de municípios que dependem da extração da madeira. Os Awá falam guajá, do tronco Tupi. Só alguns sabem um pouco de português. Eles são um dos últimos povos apenas caçadores e coletores. Vivem da floresta e pela floresta. O GLOBO esteve lá junto com o fotógrafo Sebastião Salgado para registrar o cotidiano desses índios poucos conhecidos e a dramática situação que os cerca.A terra dos Awá-Guajá já foi demarcada, homologada e registrada com 116.582 hectares. Todas as contestações judiciais foram consideradas improcedentes. Ela está dentro da Reserva Biológica do Gurupi, criada pelo presidente Jânio Quadros em 1961, e que tem o mais alto nível de proteção ambiental. Mesmo assim lá estão os grileiros e os madeireiros derrubando a floresta e encurralando os índios. Essa área da Amazônia é única, porque é a porta de entrada da floresta, e algumas espécies só existem lá.

Os Awá fugiram do contato com os brancos por quase 500 anos. Chegaram a ser chamados de “índios invisíveis”. Foram contatados só a partir de 1979, e alguns indivíduos permanecem fugindo. Vivem o momento mais decisivo de sua sobrevivência. A Justiça ordenou a desocupação da terra pelos não índios, e a Funai terá que cumprir essa ordem nos próximos meses.
A ligação dos Awá com a floresta é ainda maior do que a de outros índios. Num discurso em guajá, um dos líderes da Aldeia Juriti, Piraima’á avisou:
— Os madeireiros estão matando as árvores. Vão matar os Awá. Eu vou enfrentar os madeireiros. Eu tenho coragem.
O Exército desembarcou na região com 700 homens, numa operação com o Ibama, para reprimir o ataque à floresta e a produção de maconha em terras indígenas e encontrou abundantes provas do crime de desmatamento. É o que conta essa reportagem que tem o privilégio de ter imagens do maior fotógrafo do mundo: Sebastião Salgado, que passou três semanas com os índios, por dias longe da aldeia e dentro da floresta.

Fonte: http://oglobo.globo.com/pais/awas-lutam-contra-destruicao-dos-madeireiros-no-que-restou-da-floresta-amazonica-do-maranhao-9337369#ixzz2kDfPK6ww

No pouco que resta de Floresta Amazônica no Maranhão, vive o povo Awá, conhecido como “o mais ameaçado do planeta”.  São pouco mais de 400 pessoas, cercadas de municípios que dependem da extração da madeira.  Os Awá falam guajá, do tronco Tupi.  Só alguns sabem um pouco de português.  Eles são um dos últimos povos apenas caçadores e coletores.  Vivem da floresta e pela floresta.  O GLOBO esteve lá junto com o fotógrafo Sebastião Salgado para registrar o cotidiano desses índios poucos conhecidos e a dramática situação que os cerca.
A terra dos Awá-Guajá já foi demarcada, homologada e registrada com 116.582 hectares.  Todas as contestações judiciais foram consideradas improcedentes.  Ela está dentro da Reserva Biológica do Gurupi, criada pelo presidente Jânio Quadros em 1961, e que tem o mais alto nível de proteção ambiental.  Mesmo assim lá estão os grileiros e os madeireiros derrubando a floresta e encurralando os índios.  Essa área da Amazônia é única, porque é a porta de entrada da floresta, e algumas espécies só existem lá.
Os Awá fugiram do contato com os brancos por quase 500 anos.  Chegaram a ser chamados de “índios invisíveis”.  Foram contatados só a partir de 1979, e alguns indivíduos permanecem fugindo.  Vivem o momento mais decisivo de sua sobrevivência.  A Justiça ordenou a desocupação da terra pelos não índios, e a Funai terá que cumprir essa ordem nos próximos meses.
A ligação dos Awá com a floresta é ainda maior do que a de outros índios.  Num discurso em guajá, um dos líderes da Aldeia Juriti, Piraima’á avisou:
- Os madeireiros estão matando as árvores.  Vão matar os Awá.  Eu vou enfrentar os madeireiros.  Eu tenho coragem.
O Exército desembarcou na região com 700 homens, numa operação com o Ibama, para reprimir o ataque à floresta e a produção de maconha em terras indígenas e encontrou abundantes provas do crime de desmatamento.  É o que conta essa reportagem que tem o privilégio de ter imagens do maior fotógrafo do mundo: Sebastião Salgado, que passou três semanas com os índios, por dias longe da aldeia e dentro da floresta.



Ministro: retirada de terra Awá terá PF, Ibama e Exército

  • Ministro da Justiça programa operação, atrasada pela vinda do Papa, já para este semestre
Miriam Leitão
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Atualizado:
BRASÍLIA — O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, afirmou que a desintrusão — retirada dos não indígenas da Terra Awá, no Maranhão — será executada neste segundo semestre, e que o governo irá com tudo: “Força Nacional, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Ibama, Funai e apoio logístico das Forças Armadas”. Ele admitiu que será difícil. “Sabemos que haverá resistência, mas lá não há ocupantes de boa fé”. Cardozo garantiu que “a lei será cumprida” e informou que “o Plano Operacional já foi apresentado ao Judiciário”.
Para se concluir que não há ocupantes de “boa fé” — seja grileiros, seja posseiros — foi feito todo um processo de averiguação. Apesar disso, o ministro destacou que haverá dois tipos de tratamento:
— Os posseiros serão incluídos em programas do Incra de reforma agrária. No diálogo com os posseiros atuarão a Funai e a Secretaria Geral da Presidência. Nós sabemos que, como em outros casos, os pobres serão usados pelos grileiros e madeireiros.
Cardozo explicou que essa ação de “desintrusão” vem sendo estudada há algum tempo, mas que era preciso passar a Copa das Confederações e a visita do Papa, que mobilizaram muitos efetivos.
— Agora, as forças estarão concentradas na Operação Awá. Não posso dar detalhes porque eles são sigilosos.
A área da Terra Awá, confirmou o ministro, já foi demarcada e homologada e a ação de desocupação não havia sido realizada antes porque surgiram várias ações na Justiça, e o governo teve que aguardar a decisão.
— Houve a judicialização, mas agora todas as ações foram julgadas e o assunto já transitou em julgado, por isso é a hora da fase da desintrusão. Mas esse é um conjunto complexo de ações que exige a presença da Força Policial.
O ministro disse que o governo aprendeu com a operação de desintrusão da terra Marawatsede no Mato Grosso, onde foram mobilizados 600 homens.
— Foi difícil, porque havia gente armada, preparada para resistir, mas a ação foi bem sucedida. Nós sabíamos que precisávamos primeiro concluir Marawtsede para em seguida ir para a operação Awá.
A hora, segundo o ministro, é agora, ao longo deste segundo semestre. Nada vai ser fácil. A chegada do Exército lá em junho foi em outra operação, mas deu uma noção da força do crime. Sebastião Salgado, que acompanhou parte da ação, conta que o Exército encontrou um volume considerável de madeira dentro da floresta:
— Por causa da ação do Ibama, eles usam a própria floresta como local de estocagem da madeira derrubada. Eles calculam que deve ter 40 mil toras de madeira cortadas dentro da mata, o que dá 120 mil m³ de madeira cortada dentro da mata. É praticamente impossível o Exército retirar. Por isso os militares decidiram cortar com motosserra até ficar aqueles toquinhos sem uso comercial.
O fotógrafo acha que só desta forma, com todas as forças do Estado brasileiro, é possível proteger a mata:
— É preciso entender que se fala terra indígena, mas pela lei brasileira a terra é da União. Portanto, proteger esses índios, expulsar os madeireiros e defender essa mata é do interesse dos brasileiros.
Já a a ONG Survival, que trabalha pela preservação do território dos Awá, declarou por e-mail que “a operação chega em um momento crítico”. Citou que nos últimos anos “foram fechadas oito madeireiras, mas há ainda um número considerável de serrarias que funcionam na região”. Lembrou, por fim, que “até agora a operação não entrou na terra indígena onde ainda ocorre o desmatamento ilegal em um ritmo alucinante”.
“O risco ainda é maior para a população de índios isolados que vivem na área e que são extremamente vulneráveis às doenças trazidas pelo contato com os não-índios”, completou.




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  • Reserva Biológica Gurupi
  • Terra Indígena Awa
  • Terra Indígena Caru
  • Terra Indígena Alto Turiaçu
  • A ameaça dos madeireiros

    Sebastião Salgado se prepara para fotografar os Awá

    O discurso Awá

    Ouça trecho da fala de uma das lideranças Awá

    Denúncia

    A repórter Míriam Leitão flagra a ação ilegal de madeireiros em uma serraria

    o jovem guerreiro Jui'i

    Ouça trecho de seu discurso

    Os índios invisíveis

    O antropólogo Uirá Garcia fala sobre a cultura Awá

    O canto da caça

    Ouça o canto do jovem guerreiro antes de ir à caça

    "Nós temos coragem também"

    O jovem guerreiro Jui'i fala da ameaça dos madeireiros

    Fonte: http://oglobo.globo.com/infograficos/paraiso-sitiado/
    A repórter Míriam Leitão, a convite do renomado fotógrafo Sebastião Salgado, viajou até a Aldeia Juriti e pôde comprovar como os Awá vivem essa dramática expectativa.

    http://racismoambiental.net.br/2013/08/paraiso-sitiado-2a-parte-da-reportagem-de-miriam-leitao-e-sebastiao-salgado/